Uma reflexão a propósito do Habeas Corpus do Chimpanzé Jimmy
postado em 28 abr 2011

TODOS AQUELES QUE TÊM ACOMPANHADO DEVEM LER:

"MACACOS ME MORDAM! O HABEAS CORPUS DO CHIMPANZÉ JIMMY E A NECESSIDADE DA QUEBRA DE PARADIGMAS PELOS OPERADORES DO DIREITO.

Luís Fernando Sgarbossa

“Chegará o dia em que será reconhecido que o número de pernas, a pilosidade da pele, ou a terminação do osso sacro serão razões igualmente insuficientes para abandonar um ser sensível ao mesmo destino. Que mais é que deveria determinar a linha insuperável? Seria a faculdade da razão, ou, talvez, a faculdade do discurso? Mas um cavalo adulto ou um cachorro é incomparavelmente mais racional, assim como um animal mais fácil de comunicar-se, do que uma criança de um dia ou uma semana, ou mesmo um mês de idade. Mas suponhamos que o critério pudesse ser outro, qual ele seria? A questão não é se eles são capazes de raciocinar, e tampouco se eles são capazes de falar. A questão é se eles são capazes de sofrer.” (J. Bentham, Introduction to the Principles of Morals and Legislation, 1823, Capítulo 17, nota de rodapé).

Ganhou repercussão na imprensa, há alguns dias, a notícia de que o Poder Judiciário fluminense que não conheceu de um habeas corpus impetrado em favor do chimpanzé Jimmy (Processo n. 0002637-70.2010.8.19.0000) .
Segundo se depreende das notícias que circularam pela imprensa e Internet, o chimpanzé vive atualmente isolado em uma jaula no zoológico de Niterói. Segundo os impetrantes do habeas corpus, Jimmy é uma animal sociável, que gosta de pintar (já realizou algumas exposições!) e que deveria ser transferido para o santuário de primatas do Estado de São Paulo, onde teria espaço e poderia conviver com outros animais de sua espécie.
A ação conta com nada menos do que 29 impetrantes, entre pessoas naturais e pessoas jurídicas, inclusive Organizações Não-Governamentais e associações de defesa dos animais (foram impetrantes, entre outros, o Instituto Abolicionista Animal – IAA e o Projeto GAP – Grupo de Apoio aos Primatas). O HC foi impetrado no Tribunal de Justiça fluminense contra ato do Juízo da 5ª Vara Criminal de Niterói nos autos de n. 0063717-63.2009.8.19.0002.
O relator do HC no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro votou pelo não conhecimento do habeas corpus sob a alegação de que referido remédio constitucional somente seria cabível em favor de seres humanos.
Embora alegasse estar sensibilizado com o caso, sob o fundamento de que, tendo apenas 99,4% de seu DNA idêntico ao ser humano o Desembargador relator sustentou que o mesmo não poderia ser considerado sujeito de direitos. Ademais, prendeu-se à literalidade da Constituição que estabelece em seu artigo 5º, LXVIII que “conceder-se-á ‘habeas-corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.”
Logo, o macaco não é ninguém na opinião do Poder Judiciário fluminense, e, por não ser pessoa, não é nem pode ser sujeito de direitos, apenas objeto de direitos, da abusos de direito e de ilegalidades (aliás, vivemos em um mundo no qual os animais podem ser objeto das mais variadas atrocidades, então isso não deveria surpreender – touradas, rodeios, caça com meios cruéis, envenenamento de cães em cidades, crueldade contra animais, abandono nas ruas, abate impiedoso e cruento, utilização de animais para pesquisas científicas, privação de água e alimentação, rinhas, etc.).
No entanto, não se pode perder a oportunidade para uma pequena reflexão sobre as “verdades” anacrônicas e arcaicas, os conceitos ultrapassados com os quais vemos o mundo atual e que nos fazem tomar decisões formalistas e conservadoras.
O que se pretende com este ensaio é questionar, seriamente, a concepção de animais como meros objetos de direito, como coisas, res, semoventes. Independentemente das peculiaridades do caso concreto, ou da propriedade ou impropriedade do meio processual eleito (que se abordam apenas de passagem), questões secundárias para as finalidades deste ensaio (não é um artigo, mas mero ensaio).
Primeira reflexão: animais são bens móveis, semoventes ou sujeitos de direitos?
Desde o Direito Romano, animais são considerados bens, coisas móveis, mais especificamente “semoventes” e, assim, compreendidos como “algo” de que o homem pode se apropriar, e exercer direitos de fruir, usar e abusar (fruendi, utendi et abutendi).
Ocorre que à época em que a expressão “semovente” passou a ser aplicada aos animais como forma de escapar dos inconvenientes de aplicar as mesmas regras de posse e propriedade sobre coisas inanimadas às coisas animadas foi criada (um belo remendo que não explica nada, diga-se de passagem), outros conceitos vigiam também.
O devedor, por exemplo, respondia com seu próprio corpo relativamente às suas dívidas, e podia ser reduzido à condição de escravo ou mesmo, segundo alguns, esquartejado e dividido entre os credores, desde que o fosse além do rio Tibre.
Os escravos também não eram considerados pessoas ou sujeitos de direito e também seus proprietários dispunham de poder de vida e morte sobre os mesmos, podendo fruí-los, dispor deles e mesmo (em certa medida) deles abusar.
Ocorre que com o tempo o processo de execução foi amenizado, e a responsabilidade por dívidas passou a ser suportada pelo patrimônio, e não mais pela própria pessoa do devedor, salvo casos excepcionais.
Do mesmo modo, em período histórico relativamente recente a instituição da escravidão foi banida como instituto jurídico (e não, infelizmente, como situação fática), e há muito já não era defensável sustentar que os escravos não eram seres humanos nem sujeitos de direitos.
Por que razão, então, nosso conceito acerca dos animais como semoventes permanece o mesmo após tantos séculos? Por que não evoluiu como os demais conceitos?
A decisão do TJRJ chancela, portanto, noções que remontam à Antiguidade, e que estão mais do que desgastadas na atualidade. Mas não apenas isto. Desconsidera questões que já eram aventadas na Filosofia entre os Séculos XVIII e XIX.
Jeremy Bentham (1748-1832), um dos mais influentes pensadores da história ocidental, já em sua época sustentava que os animais eram titulares de direitos.
Bentham sustentava que a capacidade de titularizar direitos está baseada na aptidão para sofrer e não na razão. Se assim não fosse, argumentava Bentham, pessoas com problemas mentais não poderiam titularizar direitos…
O texto que epigrafa o presente ensaio foi retirado de uma das mais importantes e influentes obras do pensamento filosófico, jurídico e econômico do mundo ocidental, os Principles de Bentham, de 1823.
Ou seja, a decisão do TJRJ revela um atraso secular. A questão não está na razão, na fala (papagaio fala!), e tampouco no DNA, mas na aptidão ou capacidade de um ser de sofrer.
Outra informação importante para os julgadores seria a da existência da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, aprovada e proclamada pela Organização das Nações Unidades para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO em 27.01.1978 (texto em anexo).
Tal declaração fala, sem conservadorismo, em direitos dos animais, e, em seus 14 artigos prevê uma série de direitos dos animais, como, por exemplo:
– direito à igualdade e à existência (art. 1º);
– direito ao respeito (art. 2º, 1);
– vedação à exploração e extermínio de animais pelo homem (art. 2º, 2);
– direito à atenção, cuidados e proteção (art. 2º, 3);
– direito a não ser submetido a maus-tratos ou a tratamentos cruéis (art. 3º, 1);
– direito a não ser morto por meios dolorosos ou angustiantes (art. 3º, 2);
– direito de viver em seu ambiente natural (art. 4º, 1);
– direito de se reproduzir (art. 4º, 1);
– direito à liberdade (art. 4º, 2)
– direito de vida e crescimento nas condições apropriadas à espécie (art. 5º, 1);
– direito à longevidade natural dos animais de companhia (art. 6º, 1);
– vedação do abandono do animal, reconhecido como ato cruel e degradante (art. 6º, 2);
– direito à limitação da jornada do animal de trabalho e da intensidade do trabalho (art. 7º);
– direito à alimentação reparadora e ao repouso do animal de trabalho (art. 7º);
– vedação de quaisquer experimentos com animais que impliquem sofrimento físico ou psicológico (art. 8º);
– criação, transporte e abate de animais utilizados para alimentação que não impliquem em ansiedade ou dor para o mesmo (art. 9º);
– vedação da exploração de animais para divertimento humano (art. 10, 1);
– vedação de espetáculos e exibições de animais, por violar a dignidade dos mesmos (art. 10, 2);
– caracterização da morte desnecessária de um animal como biocídio, crime contra a vida (art. 11);
– caracterização da morte de um grande número de animais como genocídio, crime contra a espécie (art. 12, 1);
– reconhecimento da poluição e destruição do ambiente natural como causas de genocídio (art. 12, 2);
– tratamento respeitoso do animal morto (art. 13, 1);
– proibição de exibição de cenas de violência contra animais no cinema e na televisão, exceto se tiverem por finalidade demonstrar um atentado contra os direitos do animal (art. 13, 2);
– direito de representação governamental dos organismos de proteção e salvaguarda dos animais (art. 14, 1);
– defesa dos direitos dos animais e dos direitos do homem em igualdade (art. 14, 2).

Já não é mais tabu, portanto, falar em direito dos animais. Os conceitos de “semovente”, e a negativa de reconhecimento de personalidade jurídica e titularidade de direitos têm de ser revistos.
Segunda reflexão: seria possível, um dia, ultrapassarmos o paradigma antropocêntrico?
Será que o dia ao qual Bentham se referiu (texto de epígrafe) realmente chegará? Já se passaram quase 200 anos desde o dia em que ele o escreveu e tal dia ainda não chegou, e não chegará, enquanto decisões como a do TJRJ continuarem.
Como evidenciam filósofos e ambientalistas contemporâneos, é necessária uma quebra de paradigma. Vivemos ainda sob um paradigma anacrônico, denominado paradigma antropocêntrico.
Apesar de todas as novas descobertas, que relativizam as certezas que tínhamos sobre a singularidade do humano sobre o animal, apesar de todos os problemas causados pela exploração predatória do meio ambiente e dos “recursos” naturais pelo homem, continuamos com uma mentalidade positivista que crê firmemente na infinitude dos recursos naturais, na (suposta) razão humana e na supremacia e centralidade do homem, senhor da natureza que domina e da qual se serve a seu bel prazer.
Tal paradigma recusa a visão da interdependência essencial que liga inexoravelmente todos os seres vivos, simbolizada na metáfora da “teia da vida”, a que se refere o físico austríaco Fritjof Capra.
Enquanto não se compreender a interdependência essencial dos sistemas vivos, enquanto não se compreender o vínculo fundamental que os une, se continuará preso ao arcaico paradigma antropocêntrico e não haverá a ruptura para o paradigma biocêntrico, no qual a vida será o centro, e nós, seres humanos, apenas mais um elo em sua cadeia infinita.
É preciso romper com o paradigma antropocêntrico e despertar o ser humano para a ecologia profunda de que falam o filósofo norueguês Arne Naess e Fritjof Capra, orientação que, sucintamente, não separa o ser humano da natureza, e que reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos.
É preciso compreender decisões conservadoras, calcadas em conceitos ultrapassados, como um aspecto inevitável da cultura, que é sempre anacrônica, como demonstrou Thorstein Bunde Veblen.
Veblen evidencia que, sendo sempre frutos do passado, as instituições da cultura são inexoravelmente conservadoras (julgando que, seja o que for, está sempre certo) e, sendo assim, estão constantemente em descompasso com seu tempo (seja o que for, está sempre errado).
Quanto à cultura jurídica geral, me parece que a teoria de Veblen revela-se mais do que comprovada, e mais válida do que nunca. Precisamos nos munir contra o conservadorismo da cultura e de suas instituições.
Última reflexão: as formas processuais são fins em si mesmas?
Um dos motivos do não conhecimento do HC pelo Judiciário (veja-se a representatividade dos impetrantes, em um total de 29) foi, segundo as considerações do Desembargador Relator, a impropriedade do meio eleito (o mesmo sugeriu, segundo noticiado, uma Ação Civil Pública ou outro meio processual mais adequado).
Pergunta-se: e a instrumentalidade do processo? O processo é um meio ou é um fim em si mesmo? Não poderíamos ampliar a concepção de fungibilidade processual, considerando os fins perseguidos e a importância de uma adequada tutela?
Quanto a este tema, aqui abordado ainda mais superficialmente que os demais, gostaria de recordar a figura de Rui Barbosa. É sabido que, em um tempo em que não havia “mandado de segurança”, Rui manejou o habeas corpus para buscar a reintegração de servidores públicos afastados de suas funções, argumentando que o afastamento acarretava violação de sua liberdade ambulatória, pois inerentemente trazia como consequência a inacessibilidade da repartição pública aos mesmos…
Ao que parece, precisamos, hoje, de mais “Rui Barbosas”, e mais do que nunca…
Conclusivamente, cabe externar as mais sinceras congratulações aos impetrantes pela coragem, senso de empatia e vanguardismo. Aplausos em pé… Quanto ao resto, fica um convite à reflexão do leitor o tipo de judiciário que queremos no futuro… O caso do chimpanzé Jimmy é menos uma anedota do que pode parecer…

ANEXO: DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DOS ANIMAIS – UNESCO, 1978


DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DOS ANIMAIS

PREÂMBULO
Considerando que todo o animal possui direitos,
Considerando que o desconhecimento e o desprezo destes direitos têm
levado e continuam a levar o homem a cometer crimes contra os animais e
contra a natureza,
Considerando que o reconhecimento pela espécie humana do direito à
existência das outras espécies animais constitui o fundamento da
coexistência das outras espécies no mundo,
Considerando que os genocídios são perpetrados pelo homem e há o
perigo de continuar a perpetrar outros.
Considerando que o respeito dos homens pelos animais está ligado ao
respeito dos homens pelo seu semelhante,
Considerando que a educação deve ensinar desde a infância a observar, a compreender, a respeitar e a amar os animais.

PROCLAMA-SE O SEGUINTE:

Art. 1º – Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos
à existência.

Art. 2º
1. Todo o animal tem o direito a ser respeitado.
2. O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou
explorá-los violando esse direito; tem o dever de pôr os seus
conhecimentos ao serviço dos animais.
3. Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do
homem.

Art. 3º
1. Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis.
2. Se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto
instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia.

Art. 4º
1. Todo o animal pertencente a uma espécie selvagem tem o direito de viver
livre no seu próprio ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático e tem o
direito de se reproduzir.
2. toda a privação de liberdade, mesmo que tenha fins educativos, é contrária
a este direito.

Art. 5º
1. Todo o animal pertencente a uma espécie que viva tradicionalmente no
meio ambiente do homem tem o direito de viver e de crescer ao ritmo e nas
condições de vida e de liberdade que são próprias da sua espécie.
2. Toda a modificação deste ritmo ou destas condições que forem impostas
pelo homem com fins mercantis é contrária a este direito.

Art. 6º
1. Todo o animal que o homem escolheu para seu companheiro tem direito a
uma duração de vida conforme a sua longevidade natural.
2. O abandono de um animal é um ato cruel e degradante.

Art. 7º
Todo o animal de trabalho tem direito a uma limitação razoável de duração e de
intensidade de trabalho, a uma alimentação reparadora e ao repouso.

Art. 8º
1. A experimentação animal que implique sofrimento físico ou psicológico é
incompatível com os direitos do animal, quer se trate de uma experiência
médica, científica, comercial ou qualquer que seja a forma de
experimentação.
2. As técnicas de substituição devem de ser utilizadas e desenvolvidas.

Art. 9º
Quando o animal é criado para alimentação, ele deve de ser alimentado, alojado,
transportado e morto sem que disso resulte para ele nem ansiedade nem dor.

Art. 10º
1. Nenhum animal deve de ser explorado para divertimento do homem.
2. As exibições de animais e os espetáculos que utilizem animais são
incompatíveis com a dignidade do animal.

Art. 11º
Todo o ato que implique a morte de um animal sem necessidade é um biocídio,
isto é um crime contra a vida.

Art. 12º
1. Todo o ato que implique a morte de um grande número de animais
selvagens é um genocídio, isto é, um crime contra a espécie.
2. A poluição e a destruição do ambiente natural conduzem ao genocídio.

Art. 13º
1. O animal morto deve de ser tratado com respeito.
2. As cenas de violência de que os animais são vítimas devem de ser
interditas no cinema e na televisão, salvo se elas tiverem por fim
demonstrar um atentado aos direitos do animal.

Art. 14º
1. Os organismos de proteção e de salvaguarda dos animais devem estar
presentados a nível governamental.
2. Os direitos do animal devem ser defendidos pela lei como os direitos do
homem.

(*) A Declaração Universal dos Direitos dos Animais foi proclamada pela
UNESCO em sessão realizada em Bruxelas – Bélgica, em 27 de Janeiro
de 1978

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BENTHAM, Jeremy. Introduction to the Principles of Morals and Legislation, 1823.
CAPRA, Fritjof. Conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável, As. Trad. São Paulo: Cultrix, 2005.
_____. Teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos, A. Trad. Newton D. Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2006.
UNESCO, Declaração Universal dos Direitos dos Animais, 1978."

Postado por Luís Fernando Sgarbossa  em 21/04/2011
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