Era um sábado de março, geralmente um dia mais tranquilo no Santuário. Porém, cedo os chimpanzés mais antenados com a rotina souberam que seria diferente. O chimpanzé Pinho (Felipinho) ia ser operado. Uma equipe multidisciplinar de médicos humanos e veterinários se preparava para sua missão. Pinho já estava isolado em seu dormitório. Nega, sua companheira, estava em outro. O tratador Rangério dos Santos já estava com a pistola anestésica disfarçada no corredor e a médica veterinária Dra. Camila Gentile brincava com o chimpanzé para distraí-lo. Porém, eles sabiam que a rotina era diferente e que algo ia acontecer. Começaram a vocalizar e toda a cidade dos chimpanzés entrou em ebulição, uns se comunicando com os outros.
Um dardo anestésico foi espetado na perna e a anestesia começou a fazer efeito. Nega, quando viu Pinho sair na maca, pensou que ele estava morto e gritou mais ainda, alertando toda a comunidade. Nós tentamos tranquilizá-la. Já fazia mais de um ano que ninguém era anestesiado no Santuário para nenhum procedimento médico.
No centro cirúrgico, todos aguardavam a chegada do paciente que pesa mais de 90 kg, com uma ótima saúde pelas análises de sangue realizadas posteriormente, mas com um tumor num dedo de sua mão esquerda. Em menos de um ano tinha crescido rapidamente. Parecia benigno, mas inutilizava o dedo do meio que já não podia movimentar.
O Prof. Dr. Antônio Carlos da Costa, cirurgião médico especialista em Cirurgia de Mão e Microcirurgia da Santa Casa de São Paulo e do Hospital Sírio-Libanês, achava que não tinha comprometido o osso, porém só a radiologia daria o veredito. O médico veterinário, Dr. Márcio José Monteiro Corrêa, do Jockey Club de Sorocaba, com seu equipamento de radiologia, confirmou a suspeita de que o osso não estava comprometido, mas o melhor era extirpar, já que o dedo estava inutilizado totalmente.
O Dr. Giancarlo Cavalli Polesello, médico ortopedista da Santa Casa de São Paulo e do Hospital Sírio-Libanês (meu genro) e médico cirurgião do Santuário desde sua criação, concordou com a amputação. Ambos cirurgiões fizeram o trabalho, com uma perícia inigualável, que se refletiria na recuperação surpreendente e perfeita que Pinho teve.
O grande drama das cirurgias dos grandes primatas é o pós-operatório. Por isso, quando a cirurgia é muito extensiva, é impraticável. O primata vai tirar o próprio curativo, vai mexer na ferida, será muito difícil mantê-lo vivo. Porém, Pinho foi um exemplo. Manteve o curativo por quase 48 horas e quando ele o retirou, foi com cuidado e não mexeu nos pontos internos nem externos.
Pinho é um sobrevivente. Tem aproximadamente 28 anos de idade. Viveu sempre num Circo, em condições terríveis. Se relacionava com a Nega, de 38 anos, através das grades e a engravidou várias vezes. Dois de seus filhos, que não os conhecem, estão conosco: Martín e Carioca. Pinho apanhou muito no Circo, era rebelde e, para domá-lo, o amarravam e batiam nele até desfalecer. Quando chegou ao Santuário, odiava os humanos, destruía as portas, batia em tudo que fosse símbolo de domínio humano. Hoje é um ser diferente. Aprendeu a distinguir que nem todos os humanos são como os circenses, começou a ter afeição por nós e alguns tratadores, até a própria Dra. Camila, que contribuiu na anestesia, ele não guardou rancor. Ele sabe que foi pelo bem dele. Agora nos mostra a mão com o dedo amputado e agradece. Ele também sabe que aquele tumor poderia matá-lo e nós o tínhamos tirado de seu corpo com precisão e maestria.
Aos sete dias após a cirurgia, sem ter infecção na ferida, o juntamos com a Nega, que o vigiava do recinto ao lado. Se abraçaram, trocaram “grooming” e ficaram mais perto do que nunca. Cada vez que lhe levamos um agrado, nos mostra a mão e com um gesto, nos agradece.
Uma equipe multidisciplinar de dois cirurgiões humanos e três médicos veterinários demonstrou que é possível juntar os esforços, conhecimento e habilidade cirúrgica para livrar um chimpanzé de um tumor inesperado, e se recuperar rapidamente e sem sequelas.
Dr. Pedro A. Ynterian
Presidente, Projeto GAP Internacional
Imagens da preparação para a cirurgia, a mão do Pinho (antes e depois) e a volta para o recinto:
1 – Dr. Antônio da Costa (a direita) e Dra. Carolina Ynterian com seu esposo, o Dr. Giancarlo Polesello; 2 – Dr. Giancarlo, Dr. Antonio e o Dr. Márcio Corrêa (Raio-X); 3 – Rangério, Dr. Giancarlo, Dr. Antônio e a Dra. Juliana Kihara (que também é médica veterinária do Santuário); 4 – Dedo com tumor; 5 – Sutura após a extirpação do dedo; 6 – Rangério, Dr. Antônio e sua esposa, Dra. Anael Marinho (médica otorrinolaringologista), Dr. Giancarlo e Dra. Camila Gentile; 7 – Mão do Pinho com curativo final; 8 – Pinho sendo levado para o recinto de recuperação; 9 – Dra. Camila acompanhando o Pinho durante o trajeto ao seu recinto e 10 – Nega e Pinho já recuperado.