A questão no caso da China é saber quantas pessoas realmente foram infectadas pelo vírus; muitos apresentavam poucos ou nenhum sintoma e nem sequer entraram na conta
Fernando Reinach, O Estado de S.Paulo
18 de março de 2020 | 05h00
Se existe um líder que devemos ouvir durante a crise do novo coronavírus, essa pessoa é Angela Merkel, a chanceler alemã. Além de não ter papas na língua, é a única política com sólida formação científica. Doutora em Química Quântica, foi pesquisadora universitária até 1989 e desde 2005 lidera a Alemanha.
Faz menos de dez dias ela alertou os alemães para a possibilidade de até 70% da população ser contaminada com o novo vírus. A Inglaterra, onde os epidemiologistas também são ouvidos, estima que 80% da população será infectada nos próximos 12 ou 24 meses. São números assustadores, mas com base na mais sólida evidência científica.
É sabido que uma pandemia viral que atinge uma população totalmente suscetível só está controlada quando o vírus não encontra pessoas suficientes para infectar. Isso geralmente ocorre quando 70% a 90% das pessoas suscetíveis se torna imune ao vírus e, ao pular para outro indivíduo, o vírus encontra uma pessoa imune. Essa taxa de imunidade pode ser obtida de duas maneiras: vacinando a população (se disponível) ou esperando que o vírus infecte esse número de pessoas e torne a população resistente. No caso de doenças para as quais temos vacinas, o objetivo é ter sempre uma cobertura vacinal de 90%. Quando esse número cai, a doença ressurge, como foi o caso dos recentes surtos de sarampo no Brasil.
Mas qualquer leitor bem informado sabe que na China, que tem 1,39 bilhão de habitantes, foram diagnosticados 81 mil casos da doença e, com medidas drásticas, que agora estão sendo copiadas mundo afora, a epidemia em Wuhan foi controlada. Faça a conta da fração da população da China que foi infectada: 81 mil divididos por 1,39 bilhão. Somente 0,006% da população da China foi infectada até o momento.
Estaria Angela Merkel louca? Não, o que ocorreu na China foi uma pequena epidemia localizada, a primeira onda de infecção que foi totalmente abafada pelas medidas adotadas. Na China, 99,9% da população ainda não foi infectada, e é por isso que os chineses estão receosos de terminar abruptamente as medidas e já estão reclamando que os novos casos que estão aparecendo por lá estão vindo da Europa. Na verdade, a epidemia na China não imunizou seus habitantes, e o que se deteve foi a primeira onda avassaladora. Provavelmente, se tudo continuar bem, outras pequenas epidemias ocorrerão e serão controladas até que 70% da população tenha sido contaminada ou surja uma vacina. Estamos na mesma batalha que os chineses.
Até aqui más notícias. A questão no caso da China é saber quantas pessoas realmente foram infectadas pelo vírus. As 81 mil pessoas são aquelas que foram testadas e deram positivo, mas sempre se suspeitou que existia um número maior de pessoas infectadas, pois muitas pessoas apresentavam poucos ou nenhum sintoma e nem sequer entraram na conta, apesar de terem contraído o vírus. Mas quantas seriam elas?
Esta semana foi publicado um trabalho científico que analisou esse problema e demonstrou, depois de análises estatísticas cuidadosas, que 79% dos casos detectados (positivo nos testes) foram de pessoas infectadas por pessoas que não foram documentadas (nem sequer foram testadas), e 55% do total de infecções foram de pessoas não documentadas transmitindo para pessoas que tampouco foram documentadas.
Em outras palavras, somente 45% das pessoas que testaram positivo foram contaminadas por pessoas que estavam sabidamente doentes. O que isso quer dizer é que existiu em Wuhan uma enorme rede de infecção de pessoa para pessoa que ficou totalmente fora dos casos registrados. A conclusão principal é de que 86% dos casos nem sequer foram detectados. Ou seja, muito mais pessoas foram infectadas do que aparece nas estatísticas dos casos, uma espécie de cadeia de infecção fora do radar dos médicos.
Essa descoberta tem um lado ruim. Ele demonstra que será muito mais difícil controlar a pandemia do que se imaginava. Isso porque é mais provável que uma pessoa seja infectada por um caso sem sintomas do que por uma pessoa claramente doente. Essa foi a tônica da divulgação na imprensa dessa descoberta.
Mas essa descoberta tem um lado positivo. Acompanhe comigo. Todas as taxas de fatalidade são calculadas dividindo o número de mortes pelo número de casos que testaram positivos. Como morreram na China 3.226 pessoas e foram infectadas 81 mil pessoas, a taxa de fatalidade é de 4%. Esse número muda de país para país, dependendo da quantidade de testes e de quem foi testado. No Brasil, que decidiu testar só hospitalizados, esse número será maior. Mas imagine agora que esse trabalho esteja correto e o verdadeiro número de infectados na China seja duas ou dez vezes maior que os 81 mil testados positivos. Refaça as contas: a taxa de fatalidade cairá para 2% ou 0,4%. Não que esse número seja pequeno, ele ainda é muito maior que o da gripe e o suficiente para sobrecarregar o sistema de saúde.
Pessoalmente, como um diabético de 63 anos, confesso que fiquei feliz. E todos devemos torcer para que esse resultado esteja correto e se confirme, pois o número de mortos será muito menor, e o pânico causado por essa doença pode diminuir um pouco. Enfim, se esse trabalho estiver correto, essa é a primeira boa notícia que os cientistas nos dão nas últimas semanas. Para quem acredita em ciência, outras virão.
Mais informações: substantial undocumented infection facilitates the rapid dissemination of novel coronavirus (SARS-CoV-2); Science 10.1126/Science.ABB3221 (2020)
É BIOLÓGO
Fonte:
https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,uma-boa-noticia,70003237375