Um silencioso genocídio avança
postado em 25 jun 2014

Pergunto-me o que nos dá tanto medo de nossa proximidade com os símios. Talvez nos atemorize ficar frente a nossa animalidade.

Os grandes símios são quatro: os chimpanzés, os gorilas, os bonobos e os orangotangos. Com os chimpanzés e os bonobos somente nos separa um 1% do genoma. Inclusive podemos intercambiar transfusões de sangue com eles, desde que se respeite o grupo sanguíneo. Porém, eles pertencem ao gênero Pan e nós, ao gênero Homo. Uma diferença na classificação bastante forçada, porque têm outros primatas, como por exemplo o Gibão comum e o Siamang, que os incluímos no mesmo gênero não obstante os separe 2,3% do genoma. Faz mais de uma década que diversos cientistas de todo mundo têm solicitado uma revisão das classificações e a inclusão dos grandes símios, ou ao menos dos chimpanzés e dos bonobos, no gênero Homo. Porém, quando se tenta um leve reconhecimento de nossa proximidade com os grandes primatas, de sua evidente humanidade, e, como resultado, das brutalidades que cometemos com eles, rapidamente aparecem uma catarata de nojentas reações contra. Desde as piadas idiotas até a indignação hipócrita: “Se preocupam mais dos macacos que dos humanos!“. Uma demonstração, no fim, da monstruosa resistência que Darwin se deparou quando publicou A Origem das Espécies, há 150 anos. A ignorância e a imbecilidade são difíceis de erradicar.

Pergunto-me o que nos dá tanto medo de nossa proximidade com os grandes símios para que ajamos assim agressivamente, cruelmente, quiçá nos atemorize enfrentar a nossa animalidade. Quando em 2006 foi aprovada uma proposição da legislação no Parlamento Espanhol para promover uma lei de proteção aos grandes símios, os ataques gratuitos idiotas que recebeu a iniciativa fizeram que, oito anos depois, ela continue esquecida numa gaveta. O único que se pedia era que se garantisse o respeito à vida, à liberdade e a não sofrer torturas físicas ou psicológicas. O que existe de escandaloso ou de inadmissibilidade numa proposta tão óbvia?

A Associação Parlamentar de Defesa dos Animais e o Projeto GAP apresentaram há duas semanas nas Cortes um Manifesto reclamando o reconhecimento dos grandes primatas como pessoas não humanas. O Manifesto, redigido, entre outros, pelo filósofo Jorge Riechmann, é um texto eloquente e maravilhoso. No mesmo se fala de Joseph Fletcher (1905-1991), um dos fundadores da Bioética e de sua famosa lista de 15 características ou atributos para definir a personalidade humana: inteligência mínima, autoconsciência, autocontrole, sentido de tempo, sentido do futuro, sentido do passado, capacidade para relacionar-se com outros, preocupação e cuidado com os outros, comunicação, controle da existência, curiosidade, câmbio e capacidade para mudanças, equilíbrio de razão e sentimentos, idiossincrasia e atividade do neocórtex. Desta forma, inúmeras investigações científicas têm demonstrado que os grandes símios compartilham conosco todas estas características, em diferentes graus, como é óbvio, porque os chimpanzés não são tão inteligentes como Riechmann (não obstante, nos parecem mais inteligentes e mais humanos que muitos indivíduos). Os grandes primatas são capazes de aprender a linguagem dos sinais e ensiná-la aos seus filhos; executam operações matemáticas simples; fabricam ferramentas; choram por seus mortos; cuidam de seus entes queridos; se arrumam e reconhecem frente a um espelho. E nós fazemos atrocidades com eles. Como arrancar-lhes os dentes para que não mordam e extirpar-lhes a laringe para que não gritem. Isto nos falou Pedro Pozas, diretor do Projeto GAP da Espanha.

Os grandes símios estão morrendo, estamos exterminando-os junto com as selvas tropicais, que caem sob as motoserras para dar espaço a plantações de palma de azeite ou soja e fazer biodiesel. Estamos criando uma catástrofe ecológica colossal que se sustenta em duas mentiras: na falsidade de que o biodiesel é ecológico e no fato de que a FAO contabiliza como zona vegetal estes mono climas, quando na realidade são desertos verdes carentes de toda vida. Na Indonésia, terceira reserva vegetal do mundo, são cortados 51 quilômetros quadrados de selva a cada dia (o equivalente a 300 campos de futebol por hora). O orangotango só vive na Indonésia: dentro de cinco anos terá desaparecido. E depois, a seguir, os bonobos. E muito cedo, os demais grandes primatas. Estamos cometendo um genocídio e quase ninguém se importa. Nossos descendentes observarão com terror e incredulidade a nossa forma de tratar os grandes símios, da mesma maneira que hoje observamos com terror a escravidão. Se desejar assinar o Manifesto, que conta com o respaldo de dezenas de cientistas, entre no Google. Reconheçamos os grandes símios como pessoas não humanas. Tentemos protegê-los do inferno.

Rosa Monteiro, periodista e escritora,  Jornal El País, Espanha

Fonte (em espanhol):

@BrunaHusky www.facebook.com/escritorarosamontero, www.rosa-montero.com

http://elpais.com/elpais/2014/06/20/eps/1403289154_727748.html