Instalação em Sorocaba tem 70 mil m2 de abrigos para animais maltratados em trailers de circo e zôos precários
Giovana Girardi
Alex é um argentino musculoso, bonitão. Por anos exercitou os bíceps, o peito e as costas em uma barra no circo onde trabalhava no interior de São Paulo. Hoje, aposentado, vive com a parceira Carol. Apesar de se gostarem bastante, não têm um relacionamento íntimo. Sua boa aparência disfarça seqüelas dos maus-tratos que sofreu no antigo emprego, o que impede que ele se interesse sexualmente por ela.
O dilema comum a muitos seres humanos é realidade para este casal de chimpanzés. Quando Alex ainda era pequeno, teve todos os seus dentes arrancados de uma vez só para que não machucasse seus tratadores no circo. Em momentos de forte estresse e perturbação, ele grita muito ou se masturba, com medo de ser levado de volta ao circo.
Os dois vivem hoje em uma espécie de casa de repouso animal com mais 36 outros indivíduos da mesma espécie que compartilham com eles traumas semelhantes. Depois de tanto tempo fora do seu hábitat, vivendo em trailers de circos ou zoológicos precários, esses bichos perdem as referências da vida selvagem e suscitam um dilema: o que fazer com eles?
Na África, santuários de chimpanzés buscam a reintegração na floresta, tarefa que está longe de ser fácil (veja texto ao lado). Mas no Brasil e em outros países do mundo essa não é uma opção, uma vez que eles não fazem parte da natureza. Devolvê-los para seu continente de origem também está fora de cogitação. Lá, nem mesmo os animais nativos têm sossego. Os daqui não teriam a menor chance de sobrevivência. Colocá-los em um ambiente para curtir a aposentadoria parece mesmo a melhor saída.
Foi isso que o empresário de origem cubana Pedro Ynterian pensou ao criar o santuário perto de Sorocaba, onde hoje vivem 38 chimpanzés entre outros animais da fauna brasileira. Ao todo, são mais de 200 bichos. Tudo começou com Guga, que hoje tem 7 anos e foi adquirido por Ynterian com apenas alguns meses quando ele ainda acreditava que o bebê-chimpanzé nada mais seria que um animalzinho de estimação. A convivência em um apartamento mostrou que a situação era bem mais delicada.
De comprador ilegal de animais selvagens ele virou um defensor da espécie no Brasil. Convenceu seu fornecedor a lhe entregar os adultos que ele mantinha encarcerados apenas para reprodução, passou a estudar com afinco o comportamento dos chimpanzés e se associou ao Projeto Grandes Primatas (GAP, na sigla em inglês), movimento criado pelo filósofo Peter Singer que defende que os macacos tenham os mesmo direitos que os humanos. Com o aprendizado, iniciou a construção do santuário, que hoje tem 70 mil metros quadrados só de recintos para os animais.
Com a ajuda de apenas uma veterinária e alguns tratadores, Ynterian lida com adultos traumatizados. Vitor, de 9 anos, chegou há apenas um mês de um circo e ainda está se integrando ao grupo. Ele não tem um braço e fica tenso ao ver pessoas desconhecidas por perto. Luke, de 12 anos, já gosta de gente e tem fixação por sapatos. Billy, também de 12 anos, às vezes passa horas na frente do espelho se reconhecendo.
Mais fácil é trabalhar com alguns chimpanzés crianças, que chegaram pequenos ao local e estão crescendo de modo relativamente próximo ao natural.
Sete infanto-juvenis liderados por Guga, por exemplo, chamaram a atenção no ano passado de um grupo de antropólogos e primatologistas da Universidade de São Paulo, que planejaram observar como ocorrem as alianças tão características da espécie. Entre eles, já dá para observar a tentativa de Carlos, o segundo na hierarquia, de superar Guga. Entretanto, o projeto não foi para frente.
Para Ynterian, há limites em quanto é possível ser natural. Os recintos não têm árvores, porque ele acredita que há risco de os chimpanzés arrancarem galhos e tentarem fugir através das cercas elétricas. Nem todos podem viver em grupo, porque alguns são tão perturbados que ou agridem os demais ou podem, em caso de stress, se automutilarem.
Na alimentação, o empresário fornece, além de frutas, algumas guloseimas, como refrigerante e bolachas, com a desculpa, típica de pai que mima os filhos, de que eles já estão acostumados. ‘Não adianta querer que eles cacem cupim para comer. São seres diferentes, chimpanzés civilizados que gostam de dormir em lugar limpo, com cobertor. Estão acostumados ao mundo que criamos para eles. Comem o que a gente produz. Não dá para ignorar isso’, diz.
INTEGRAÇÃO POLÊMICA
Ynterain acredita que seu santuário é a prova da capacidade de integrar os chimpanzés à sociedade. ‘Trabalhamos para que eles vivam bastante, mas também queremos mostrar que eles têm capacidade de se desenvolver. Estou construindo uma escolinha para que possam desenhar, pintar, ver TV, ‘ler’ revista. São inteligentes, entendem a civilização. Eles não vão voltar para a mata, seu futuro é aqui, então vamos fazer o melhor por eles.’
Apesar de a idéia do santuário ser louvável, uma vez que esses animas vivem hoje em condições infinitamente melhores que as anteriores, dizer que se trata de ‘chimpanzés civilizados’ soa um pouco estranho. De um modo geral, primatologistas e estudiosos de comportamento animal consideram que o ideal é deixar o bicho em cativeiro o mais perto possível da sua vida selvagem.
Claro que até pela proximidade genética dos chimpanzés com os seres humanos é natural vê-los como ‘pessoinhas’. ‘Mas não podemos aculturá-los. Chimpanzés vindos de situações críticas acabam ficando muito dependentes dos homens. Mas o ideal é tentar reconstituir sua natureza, diminuir a interação com os humanos e deixar que eles aprendam a viver com seus iguais. O melhor para o chimpanzé é viver como chimpanzé’, afirma o etólogo Eduardo Ottoni.
Integrar à natureza é complicado e estressante
A discussão sobre o que é melhor fazer com chimpanzés resgatados de cativeiro é ainda bastante acalorada. Nas últimas décadas, várias tentativas de reintrodução em florestas da África acabaram frustradas, com a morte prematura dos animais – seja porque eles não conseguiam cuidar de si mesmos nem se integravam ao grupo selvagem ou porque viravam alvos fáceis de caçadores.
Uma iniciativa que parece estar dando certo é do grupo Help Congo, uma organização liderada pela francesa Allette Jamart que há cerca de 15 anos combate o comércio ilegal de chimpanzés no país e, na medida do possível, tenta devolvê-los à mata.
Recentemente o trabalho foi registrado pelo Discovery Channel no documentário Chimpanzés do Congo, o Caminho para Liberdade. Mesmo em condições bastante propícias, e apesar de bem-sucedida, a experiência não se mostrou nada fácil. Assim como Ynterian, Allette criou alguns órfãos desde que eles eram bebês. A diferença é que eles cresceram em semicativeiro, em uma ilha onde aprenderam a viver em grupo e conseguiam se alimentar sozinhos, apesar de receberem visitas diárias dos pesquisadores e um suplemento alimentar.
Quando alcançam a maturidade, é chegada a hora da transferência. O documentário mostra como isso foi feito com um grupo de quatro adultos e um bebê que viviam juntos. Separadamente, eles foram anestesiados e levados da ilha até a floresta. Quando lá chegaram, foram postos em uma gaiola, objeto desconhecido por eles e que gerou pânico, mas a idéia era ambientá-los aos sons e cheiros da mata antes de enfrentarem o desconhecido. Outros chimpanzés que já haviam sido reintroduzidos foram chamados para deixar o ambiente mais familiar. Ainda assim, ao serem soltos, os primeiros momentos foram dramáticos. Um deles chegou a ficar perdido por 21 dias, mas três meses depois aparentemente todos estavam bem.
Fonte: http://txt.estado.com.br/editorias/2006/12/10/ger-1.93.7.20061210.4.1.xml