Somos todos africanos
postado em 05 out 2017
Legenda: CFER3 SÃO PAULO SP 24/03/2010 FERNANDO REINACH VIDA& Foto para recorte do colunista Fernando Reinach. FOTO: Clayton de Souza/AE

Fernando Reinach, O Estado de S.Paulo
30 Setembro 2017 | 04h00

A história de nossa espécie pode ser dividida em três grandes períodos. O primeiro vai do surgimento dos hominídeos na África, 2 milhões de anos atrás, até o surgimento do Homo sapiens, 300 mil anos atrás.

O segundo começa com o surgimento de nossa espécie e vai até a descoberta da agricultura, aproximadamente 15 mil anos atrás. E o terceiro, curtíssimo, começa com a agricultura e termina na atualidade. A novidade é que agora possuímos mais um método para estudar esse segundo período: o sequenciamento do genoma de indivíduos que morreram milhares de anos atrás.

Foi durante esse segundo período, que durou 285 mil anos, que surgiram os grandes grupos raciais e nos espalhamos pelo planeta. Durante esse tempo, nossos ancestrais viviam em pequenos grupos, caçando e coletando frutas e raízes. As cidades não existiam, e a escrita estava longe de ser desenvolvida. Mas já éramos praticamente idênticos ao que somos hoje.

Até recentemente, esse período era estudado por meio de esqueletos e pelo método do carbono 14, que permite determinar a idade dos esqueletos. Apesar dos esqueletos do início dessa época possuírem características únicas, as mudanças que ocorreram nesse período foram relativamente pequenas quando comparadas com os 2 milhões de anos anteriores.

Nas últimas décadas foi possível, sequenciando o genoma de pessoas de diferentes raças, inferir quando os diferentes grupos surgiram e se separaram. Na última década, foi descoberta uma maneira de extrair DNA de esqueletos antigos, principalmente do interior dos dentes, e foi possível comparar o genoma humano com, por exemplo, o dos Neandertais. Agora estamos entrando em uma nova fase: o sequenciamento e a comparação de dezenas de genomas de esqueletos fósseis de diferentes idades e locais.

Nesse trabalho foram sequenciados os genomas de sete indivíduos, três caçadores coletadores de 2 mil anos atrás e quatro genomas de pessoas da idade do ferro, que morreram de 300 a 500 anos atrás, todos de origem africana. Comparando esses genomas com outros recentes, foi possível construir um primeiro modelo de como surgiram as diferentes populações humanas.

Após surgirem 300 mil anos atrás, os humanos se dividiram em duas populações por volta de 285 mil anos atrás. Um grupo ocupou a região logo abaixo do Saara e outro, o Sul da África. Quase 180 mil anos atrás cada um desses grupos se dividiu em dois.

Os do Sul se dividiram nos povos Khoe-San do Sul, que vivem até hoje no extremo sul da África, e os Khoe-San do Norte, que vivem no deserto do Kalahari. Entre 200 mil e 100 mil anos atrás, a população que ocupava a região abaixo do Saara se dividiu em três grupos com características genéticas distintas. O primeiro – os forrageiros -, deram origem aos grupos que hoje ocupam o centro da África. Os outros dois grupos ocuparam o leste e o oeste da África. Nessa época, éramos cinco grupos geneticamente distintos compartilhando a África. Finalmente, por volta de 85 mil anos atrás, parte do grupo que ocupava o leste da África migrou para fora da África e deu origem às populações que se espalharam por Europa, Ásia e, finalmente, a América.

O que esses resultados confirmam é que nossa espécie, nos 300 mil anos de sua existência, passou aproximadamente 215 mil anos na África, onde se deu origem a diferentes etnias e culturas. As diferentes raças que ocupam o restante do planeta são um evento recente, que ocorreu nos últimos 85 mil anos.

Isso confirma que somos todos muito mais africanos que qualquer outra coisa. Eu, por exemplo, talvez devesse me descrever como um africano do Leste, que saiu da África recentemente (há 85 mil anos) e perdeu a pigmentação da pele muito depois (10 mil anos atrás). E quase ontem (mil anos atrás) se tornou um ariano/judeu. Finalmente, nos últimos segundos (70 anos), passou a viver no Brasil. É por isso que a discriminação racial não faz o menor sentido biológico.

Os ancestrais de todos nós passaram a maior parte de sua existência convivendo na África. Faz pouco, muito pouco tempo, que tomamos rumos distintos.

MAIS INFORMAÇÕES: SOUTHERN AFRICAN ANCIENT GENOMES ESTIMATE MODERN HUMAN DIVERGENCE TO 350,000 TO 260,000 YEARS AGO. SCIENCE 10.1126/SICENCE.AAO6266 (2017)

FERNANDO REINACH É BIÓLOGO

http://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,somos-todos-africanos,70002021792