Em 80 mil metros quadrados de área construída, no Santuário vivem hoje mais de 40 chimpanzés.
Chimpanzés e seres humanos compartilham mais de 99% de semelhanças entre seus respectivos DNA’s (a sigla para Ácido Desoxirribonucléico), que são as moléculas que reproduzem o código genético responsável pela transmissão das características hereditárias de cada espécie. Menos de 0,1% de diferença, embora na prática signifique muito em termos de civilização, não justifica, porém, que os chimpanzés – ou qualquer outro ser vivo com mais ou menos semelhanças genéticas – não tenham seus direitos respeitados pelo homem. Não era isso, no entanto, o que ocorria até recentemente em larga escala no Brasil.
Considerando animais “exóticos”, termo aplicado para os que não pertencem à fauna brasileira, eles não tinham uma legislação que os protegessem. Resultado: explorados pelos circos até a fase jovem, assim que se tornavam adultos – e donos de uma força correspondente à de sete homens – passavam mais dos 50 anos restantes de suas vidas trancafiados em jaulas. E muitas vezes castrados e sem dentes, estes arrancados, entre outros maus tratos que costumavam sofrer. A situação dos chimpanzés no Brasil hoje só não é mais assim porque entraram em cena pessoas como o microbiologista Pedro Ynterian, empresário de sucesso que há seis anos criou, com recursos e iniciativa própria, um Santuário de Grandes Primatas instalado em plena região de Sorocaba, próximo à rodovia Castelo Branco, onde não é permitida a visitação pública.
Lá estão mais de 40 chimpanzés, grande parte deles resgatados – ou comprados – de circos, zoológicos e de particulares, para que ganhassem um “lar”, com direito a bons tratos, qualidade de vida e tratamento contra as seqüelas que os abusos deixaram em pelo menos metade deles. Isso explica por que não podem ser visitados, uma vez que já sofreram muito com assédio dos humanos e precisam de privacidade.
“Cada vez que eu ouvia falar de chimpanzés vítimas de maus tratos eu pensava no Guga. Ficava revoltado, principalmente depois de ter percebido a inteligência que esses animais têm e o carinho de que são capazes”, conta Ynterian, referindo-se ao primeiro chimpanzé que comprou e que se tornou o responsável por ele ter criado o Santuário e iniciado a luta atual, a qual vem culminando com significativas conquistas pelos direitos desses primatas.
Ynterian explica que, ao contrário dos animais silvestres, que pertencem à fauna brasileira, os exóticos são comercializados porque não existe uma lei no Brasil que os proteja. “É um contra-senso, a fauna é uma só e os animais são todos iguais”, reclama ao explicar que por essa razão luta para que a mesma lei seja aplicada a todos.
“Já conseguimos junto a vários vereadores do Brasil a aprovação de leis municipais que proíbem circos com animais. Cerca de 40 municípios do país já aplicam essa lei. Ao final, os circos acham melhor entregar os animais do que não poder entrar em grandes cidades”, comemora, antes de completar dizendo que atualmente não existem mais chimpanzés trabalhando em circos no Brasil. “Sabemos que apenas quatro estão trancados em gaiolas, até um dia serem entregues a nós”.
Hoje ligado ao Projeto de Proteção dos Grandes Animais (GAP), dos Estados Unidos, e com reconhecimento do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), o Santuário para Grandes Primatas – Brasil, mantido por Ynterian e voluntários, é o maior da América Latina, com 23 alqueires, 80 mil metros quadrados de área construída e capacidade para mais 10 chimpanzés, além dos 40 que já abriga. Os gastos mensais, arcado pelo microbiologista, chegam a R$ 40 mil, fora os investimentos em infra-estrutura.
A paixão de Ynterian pelos macacos vem de longa data, desde que iniciou um Criadouro Preservacionista, há dez anos, na área ao lado onde hoje se localiza o Santuário, com várias espécies de macacos silvestres. Lá estão hoje cerca de 200 animais.
A chegada dos chimpanzés teve início logo depois de Ynterian ter comprado Guga, com três meses de idade, de um criadouro comercial no Paraná. “Foi quando percebi que havia cometido um erro. Chimpanzés não são pets, não poderia tê-lo como animal de estimação”, conta. Daí para a luta pelos direitos dos grandes primatas e contra os maus tratos em circos e zoológicos foi um passo. “Começaram a acontecer coisas que eu não esperava. As pessoas faziam denúncias de maus tratos e como não havia um lugar para levar os animais, comecei a expandir o futuro santuário”, relembra.
Como na época Ynterian não conseguiu convencer o proprietário no criadouro do Paraná a fechar o estabelecimento, comprou sete dos dez animais adultos que viviam lá. Os outros três foram para um zoológico. “Eles tinham lá um pequeno sítio, onde tiravam os filhotes das mães com dois dias de vida, criavam como se fosse um bebê humano e depois vendiam para circos, particulares, entre outros”.
O microbiologista afirma que todos os chimpanzés que vivem em zoológicos no Brasil possuem perturbações psiquiátricas. “Os recintos não são adequados, o assédio é grande, eles não têm privacidade, ficam expostos para o público o tempo todo, ficam obrigados a serem observados, isso é estressante. Por isso insistimos para que isso seja mudado. Se é para existir zoológico que seja em condições adequadas”, afirma.
Na luta com Ynterian estão hoje mais quatro santuários de grandes primatas: dois em Cotia, um em Curitiba e um em Ubatuba. Nenhum deles recebe ajuda do governo e tampouco permitem a visitação pública. “O contato com o público ocasiona sofrimento aos grandes primatas. Também é perigoso circular por aqui, pois há janelas por onde os chimpanzés podem colocar a mão. Temos animais muito agressivos e com problemas psiquiátricos”.
No Santuário da região de Sorocaba, cinco funcionários cuidam dos animais. “Aqui é muito gostoso, cada dia vivo uma história diferente, eles são muito carinhosos, cada um com sua personalidade. Tem muita coisa para contar”, afirma a veterinária Camila Gentile. Psiquiatras, ortopedistas e homeopatas também auxiliam no atendimento, quando necessário.
Por causa dos problemas psicológicos, a maior parte dos machos é impotente, mas há dois anos e meio nasceu ali Luíza, um bebê chimpanzé sapeca que se esconde das fotos – o que dá muitas esperanças aos mantenedores, trabalhadores e voluntários encarregados de divulgar a filosofia e missão do Santuário.
“Daqui a 40 anos, não haverá chimpanzés nas matas. Nós formamos um grupo que gosta, ama e dará continuidade a este projeto, que é algo que gosto muito. Os chimpanzés são muito inteligentes, têm sua linguagem própria, só não falam como nós. Por isso cabe a nós falar por eles”.
O Projeto GAP Brasil recebe doações. Mais informações no site http://www.projetogap.com.br/
UMA TARDE COM OS CHIMPANZÉS
Emílio e a veterinária Camila: muito carinhoso, ele adora abraçar e ser abraçado.
Os chimpanzés do Santuário de Grandes Primatas da região de Sorocaba vivem soltos em uma construção de tijolos de cimento, em grandes alas que se intercomunicam por galerias. Com parte a céu aberto e parte coberta, algumas são cercadas por tijolos e outras apenas por cercas elétricas de baixa voltagem, apenas para evitar a aproximação.
Guga que é o líder dos chimpanzés jovens e quem inspirou a criação do Santuário, vive em uma dessas áreas com mais dois chimpanzés adolescentes, Carlos e Emílio.
Quem está do lado de fora e se aproxima deles, logo fica apreensivo diante dos gritos e gestos que fazem. De pé e muito fortes, na verdade, os gestos indicam a vontade que eles têm de abraçar e serem abraçados. Guga e Emílio, por nunca terem sofrido maus tratos, são os mais sociáveis do Santuário.
Embora não receba visitação pública, a reportagem do É Domingo teve acesso à “casa” de Guga e Emílio. Antes, porém, foi preciso ter a “aprovação” deles, o que significou passar por uma verdadeira “revista”: os dois cheiraram, tocaram, enfiaram as mãos nos bolsos, revelaram-se muito curiosos. Passado esse momento, logo se revelaram criaturas dóceis, que só exigem duas coisas dos humanos: carinho e atenção.
Guga, por ser mais curioso, mexe aonde pode. Já Emílio pega nas mãos das pessoas e começa a pular pedindo colo como se fosse uma criança. Os chimpanzés são engraçados, brincalhões e xeretas, tanto que se vêem uma ferida em alguém já querem cutucar. Vale lembrar que adoram sapatos.
Para estimular toda essa energia e inteligência – e, principalmente, para provar que os chimpanzés merecem respeito –, uma escolinha está sendo construída para os mais jovens do Santuário.
“Eles gostam de desenhar, escrever, assistir TV, folhear revistas, brincar, etc. Quero ocupar o tempo deles e mostrar a inteligência e criatividade que eles têm. O tratamento diferenciado é necessário, pois eles são muito próximos e parecidos com nós, cada um tem uma personalidade e um jeito de ser todo próprio”, diz Ynterian.
O microbiologista diz que, por meio de sons, os chimpanzés avisam quando algum estranho chega. Os mais curiosos se aproximam das cercas, ficam olhando e acompanham o movimento de quem passa. Um deles, porém, instalado por conta própria no alto de uma árvore, com visão privilegiada, tomou para si o posto de sentinela do Santuário.
Texto: Érika Silva
Fotos: Érick Pinheiro
Fonte: Revista É Domingo, Edição 12/ Sorocaba 25 de Fevereiro de 2007, Páginas 30 à 36.