(Reprodução de matéria publicada no site da Revista Época On Line)
Motivados por denúncias de maus tratos, ambientalistas querem aprovar um projeto de lei que proíba o uso de animais em espetáculos. A questão é tão polêmica que alguns circos que aderiram por contra própria à restrição sofrem ameaças de outros membros da classe
Margarida Telles
No picadeiro, leões e tigres pulam com destreza uma argola em chamas. Um chimpanzé anda na bicicleta, e um elefante equilibra-se com agilidade sobre o banquinho. As crianças riem e os pais ficam satisfeitos com o espetáculo. O que essas pessoas não sabem, contudo, é que o tigre e o leão tiveram suas garras e presas arrancadas, para se tornar menos perigosos, passam fome e contraíram aids felina depois de ser alimentados com carne de gatos de rua. Que o macaco foi totalmente castrado, teve os dentes arrancados e os olhos cegados para se submeter ao treinador. E que o elefante, para aprender a equilibrar-se no banco, foi espancado, agredido com uma lança e passou dias amarrado pelas patas, sem poder se mexer. As cenas descritas são comuns em muitos circos do Brasil e do mundo e despertam a preocupação de ambientalistas, que mobilizaram a população e o poder público para aprovar uma lei federal que proíba o uso de bichos nos espetáculos.
No dia 3 de novembro aconteceria uma audiência pública em Brasília para debater o projeto de lei, mas, cinco dias antes da data marcada, o presidente da Comissão de Educação e Cultura, o deputado João Matos (PMDB/SC), determinou o adiamento da discussão. Foi a terceira vez que a audiência acerca do PL 7291/2006 foi postergada no ano de 2008.
Em protesto ao adiamento do projeto de lei, ambientalistas e membros de ONGs de proteção aos animais compareceram à Brasília e entregaram aos integrantes da Comissão e ao Ministério do Meio Ambiente o vídeo “Stop Circus Suffering” (algo como “parem com o sofrimento no circo”), que mostra cenas de maus tratos e torturas recebidas pelos animais nos bastidores do picadeiro. José Maurício Padroni, assessor do Ministério do Meio Ambiente, afirmou que o Ministério é veementemente contra o uso de animais em circos. “Nós não precisamos ser convencidos de que isso é ruim, porque já sabemos. Apoiamos essa causa e estamos fazendo esforços para convencer também os outros ministérios”, disse o assessor.
Leis similares ao PL 7291/2006 já existem em diversas cidades do mundo, como Veneza e Barcelona, e em países como Grécia, Austrália, Singapura, Bélgica e Israel. No Brasil, os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Sul já proíbem a presença de animais em circos. No Ceará e em Santa Catarina, projetos semelhantes estão em tramitação. Em passagem pelo Brasil, Helder Costantino, representante da Animal Defenders International (ADI), ONG de defesa animal sediada em Londres, afirmou que a aprovação da lei seria uma vitória histórica para os ambientalistas. “Se um país grande como o de vocês adotasse a lei federal de proibição do uso de animais em circos, seria um importante exemplo para todo o mundo”.
Dentro da Lei
Caso o PL 7291/2006 seja aprovado, os donos de circos terão que parar imediatamente de utilizar os animais em espetáculos, mas possuirão o prazo de três anos para decidir sobre o futuro dos animais, que poderão ser vendidos ou doados, desde que não para circos de outros países.
Charlieston Monteiro, de 33 anos, decidiu adotar essas medidas antes da votação do projeto de lei. Dono do Circo Mágico Moscou, que está em sua família há 160 anos, em 2007 ele doou todos os animais que possuía, entre eles elefantes, tigres, hipopótamos e ursos. “Os animais viviam no circo há sete gerações. Por mais que a gente desse carinho, eles sofriam muito nas viagens, não tinham um espaço adequado”, diz Charlieston. O circo passou a integrar o projeto Circo Legal Não Tem Animal, e os bichos foram encaminhados para o Zoológico de Brasília e para o Projeto GAP, de proteção aos grandes primatas, com o intuito de serem tratados e, depois, retornarem ao seu habitat natural.
Após doar seus animais, Charlieston precisou remodelar a apresentação do circo. “Mudamos toda a estrutura do espetáculo, contratamos novos funcionários e valorizamos mais o artista. Os espectadores gostaram muito do resultado”. Contudo, muitos donos e funcionários de circos que ainda utilizam animais ficaram ofendidos com as adaptações do Circo Mágico de Moscou. “Passei a receber ameaças de muitos circos. Os artistas circenses que trabalham comigo também sofrem ataques, e muitos foram embora com medo”, conta Charlieston.
A promotora de Defesa do Meio Ambiente Kátia Lemos acompanhou de perto a perseguição a Charlieston, que teve início quando ele ajudou o Ibama a capturar animais que eram vítimas de maus tratos em um circo que se apresentava em Brasília. A promotora é responsável por dois processos contra circos, e diz que muitos grupos ainda tentam manter os animais nos espetáculos. “Os circos têm um lobby pesado, e pretendiam até mesmo criar uma frente parlamentar de apoio ao circo – com bichos, claro”, afirma a promotora. “Contudo, a mobilização das ONGs de proteção aos animais os desencorajou.”
Marilene Queribim foi a primeira mulher dona de circo no país, e trabalha no ramo há 30 anos. Vice-presidente da União Brasileira de Circo Itinerante, Marilene afirma ser a favor de uma lei que regularize a situação dos animais nos circos, de modo que somente quem tenha as condições necessárias possa mantê-los nos espetáculos. “Principalmente no interior do Brasil, as pessoas têm o fascínio de ver o animal de perto, e em muitos locais não existem zoológicos, então o circo tem uma função pedagógica”, afirma Marilene.
Com o adiamento da audiência pública sobre o projeto de lei, possivelmente a questão só voltará ao congresso em 2009, e ainda estará sujeita a mudanças. Até lá, resta a dúvida sobre o futuro dos animais que, no picadeiro, trazem risos, e, nos bastidores, tiram o sono do público.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI17248-15254,00-QUANDO+O+CIRCO+PERDE+A+GRACA.html