“Pense estrategicamente”, diz Peter Singer
postado em 01 jun 2020

Tradução Luna Mayra Fraga Cury Freitas*

“Pessoal, não se preocupem, este é o último do Singer”, anunciou nosso professor de ética no último semestre. O curso introdutório foi uma ampla varredura da filosofia moral e, ainda assim, Peter Singer tornou-se o foco de todas as palestras.

O professor australiano desfruta de uma espécie de fama e influência inédita para os filósofos contemporâneos; seus livros Practical Ethics, Animal Liberation e Famine, Affluence e Morality provocaram debates públicos sobre morte induzida, tornaram-se o texto fundamental do movimento de libertação animal e popularizaram o princípio do “altruísmo efetivo”, respectivamente.

Por que tão popular?

“Acho que há três razões”, diz Singer, na estrutura e tom já familiares aos seus milhões de leitores. “Primeiro, meu trabalho… que foca em questões éticas importantes, como a pobreza global, que afeta centenas de milhões de pessoas, ou, no caso dos animais, centenas de bilhões de seres sencientes”.

“Em segundo lugar, meu trabalho também se concentra em questões que não são meramente teóricas, mas parte da nossa vida cotidiana que podemos fazer algo a respeito, como voluntariar-se ou doar para instituições de caridade eficazes, ou deixar de comer carne. E, em terceiro lugar, eu sempre tento escrever em linguagem simples, sem usar jargões acadêmico que atrapalham a compreensão do que estou dizendo.”

Animais e o vírus

Muitos afirmam que a fonte da recente pandemia de coronavírus foi uma feira de alimentos frescos/vivos na China que vende animais exóticos. “Não há nenhuma lei nacional de bem-estar animal na China ou quaisquer padrões para regulamentar o grande número de fazendas industriais no país”, explicou Singer. “Infelizmente, a China é conhecida por isso, apesar de suas tradições budistas, que você acha que a tornaria mais simpática a este tipo de causa”.

“Eu já estive na China, e quando você visita os pontos turísticos mais populares – a Grande Muralha perto de Pequim, por exemplo – eles têm ursos em exposição em pequenos recintos. Não seria tolerado ter animais em cativeiro assim em qualquer grande atração turística na Europa ou Austrália ou Estados Unidos”.

Em uma questão trazida à tona em uma série recente da Netflix, Singer esclareceu; “Os Estados Unidos têm alguns lugares bem terríveis, devo dizer, mas eles tendem a ser pequenos zoológicos privados, não é uma coisa grande que todos sabem”.

Com a pandemia trazendo à tona este tipo de feira de alimentos frescos/vivos, ainda poderia haver esperança de que os animais da China pudessem ter melhores condições. Mas Singer é cético. “Ainda há muito pouca preocupação de um número insuficiente de pessoas para que o governo veja a necessidade de fazer algo a respeito”.

“Conheço vários defensores do bem-estar animal na China que têm tentado fazer algo a respeito. Eles têm lutado por anos sem muito progresso, exceto um pouco para cães e gatos.”

Quanto custa uma vida?

No auge da epidemia em Nova York, enquanto enfrentava questões sobre a reabertura da economia, o governador Andrew Cuomo afirmou claramente que “não vamos colocar uma cifra de dólares na vida humana”. Singer, reconhecidamente na posição mais afortunada como filósofo não político, alertou que tal ideia simplesmente não é verdade.

“Temos que pensar não apenas no que queremos alcançar, mas também nas estratégias para alcançá-lo”

“É apenas uma estratégia retórica sugerir que o valor da vida humana supera todo o resto. Cada governo, implicitamente, coloca uma cifra de dólares em salvar vidas humanas. Se não o fizesse, gastaria cada dólar de receita tributária que tem diretamente em salvar vidas humanas, e obviamente não fazem isso.

“Os parques nacionais do estado de Nova York não são exatamente “salvadores de vidas”, por exemplo – preservam a natureza selvagem e oferecem oportunidades de lazer … você pode fechar o parque ou vendê-lo para desenvolvedores, mas ninguém quer fazer isso”.

Ainda assim, “se você se resumir tudo a vidas versus vidas, um lockdown tem os seus custos”. Na recuperação econômica subsequente, haverá “grandes dívidas a pagar, e elas serão pagas pelos governos que gastarão menos em novos hospitais e em treinamento de equipes médicas”.

O sofrimento transcende fronteiras

O livro e organização de Singer denominados ‘The Life You Can Save’ argumenta que se você concorda que pular em um lago para salvar uma criança afogada é moralmente obrigatório (mesmo que você perca dinheiro no processo), então você também deve concordar em doar o quanto puder razoavelmente para salvar a vida de crianças que morrem de causas evitáveis em todos os lugares.

Mas Singer sabe que esse “altruísmo eficaz” não é a maneira como as pessoas amplamente se comportam atualmente. Pensamos “que um ano de vida é menos valioso para alguém em um país de baixa renda do que para alguém em um país de alta renda … sempre gastamos muito mais em salvar vidas em nossos próprios países”.

Vivendo no momento

Em resposta aos pedidos de ajuda internacional, o argumento é que os governos devem estar na vanguarda e não nas instituições de caridade. Mas Singer diz que essa não é uma boa razão para não ajudar.

“Podemos fazer muito para reduzir a pobreza extrema através de ações privadas de caridade”. Por outro lado, para eliminar a pobreza “será necessária ação dos governos… Acho que isso ainda levará um tempo”.

Os objetivos internacionais são úteis, mas otimistas. “A ONU tem esses Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que eliminarão a pobreza até 2030. Eu realmente não acho que isso seja realista”.

Sobre a questão de saber se os governos que recebem ajuda se tornam dependentes e, portanto, nunca se desenvolvem, “eu não acho que o veredicto esteja realmente neste ponto, e dado que não está, eu não acho que seria justificável sacrificar as pessoas atualmente necessitadas dizendo ‘bem, a longo prazo, isso vai ajudar mais pessoas porque o governo vai agir com mais responsabilidade’”.

Em última análise, temos que salvar vidas agora. “Acho que deveríamos nos concentrar no que podemos fazer aqui e agora, e podemos fazer muito em termos de redução da pobreza extrema e, ao mesmo tempo, encorajar nossos governos a fazer mais”.

“Temos que pensar não apenas no que queremos alcançar, mas também nas estratégias, e qual é a probabilidade de alcançarmos nossos objetivos usando essas táticas. Ajudar algumas instituições de caridade privadas – como aquelas que distribuem mosquiteiros contra a malária – é algo que você pode realmente fazer e ter certeza de que funciona”.

“Compare isso com coisas como eliminar a corrupção em países de baixa renda. Objetivo fantástico, mas é muito mais difícil saber como conseguir isso”.

Refeições universitárias e hambúrgers alternativos

Estudantes da Universidade de Durham (Reino Unido) e outros ao redor do mundo são frequentemente quem mais se manifesta quando se trata de crueldade animal e mudanças climáticas. Singer está por trás de tais preocupações, mas, como sempre, diz que os ativistas devem escolher caminhos com cuidado.

Na Universidade de College (Londres), uma moção proibindo carne na cantina foi rejeitada por pouco, mas antes que Singer endosse a obrigação moral de instituir a política de qualquer maneira, ele quer proceder com cautela

“Talvez você queira ser um pouco mais preciso. Você poderia fazer uma moção que diz que as cantinas não devem servir produtos animais cultivados fazendas industriais, e uma moção separada dizendo que a cantina não deve servir carne bovina ou de cordeiro para reduzir as emissões de gases do efeito estufa”.

“E talvez você consiga apoio para ambas as moções, e deixe para as autoridades da cantina descobrirem que tipo de carne eles iriam servir e de onde ela viria.

“Se os manifestantes pelo clima querem bloquear as ruas, acho que isso é totalmente defensável”

Quando perguntado se vê um caminho rumo a uma sociedade mais vegetariana, Singer destacou o poder do mercado. “Vai depender um pouco de quais produtos chegam ao mercado. Se os preços caírem e bons produtos saborosos estiverem disponíveis, então acho que isso contribuirá para a mudança dos padrões alimentares”.

Em uma informação bem-vinda sobre a dieta de Peter Singer, ele acrescentou animadamente “Na verdade, eu acabei de experimentar hoje no jantar um novo hambúrguer à base de plantas que era novo no mercado, e minha esposa e eu achamos muito bom. Não que comamos muitos hambúrgueres de qualquer maneira, mas valeu a pena tentar”.

Ele não tinha certeza se a invenção australiana já estava disponível no Reino Unido – talvez a próxima edição do Practical Ethics possa comparar variedades de hambúrgueres a base de plantes em vários países.

Para salvar o mundo, bloqueie, mas não bombardeie

Quando se trata do nosso processo democrático, há uma falha fundamental. “Se você tem uma eleição no Reino Unido, as pessoas nos países mais pobres, mais seriamente afetados pelos gases de efeito estufa, considerando que eles não têm os recursos para se proteger contra este efeito, não têm direito a nenhum voto. E, claro, as gerações futuras que sofrerão com isso também não poderão votar”.

Neste contexto, é justificável que, aqueles que protestam contra leis injustas, violem algumas no processo. “Se os manifestantes do clima querem bloquear ruas, fazer protestos, ser presos; todas as táticas clássicas de desobediência civil, eu acho totalmente defensável, por ser uma forma de demonstrar a importância da questão, a sinceridade das convicções daqueles que estão protestando, e tentar apelar para que outras pessoas vejam por que estão tão preocupadas com essa questão e levem isso em conta em suas escolhas eleitorais”.

“Não sou fã de gestos vazios”

Há uma linha muito clara, no entanto, que separa a violência. “Em parte”, diz Singer, “porque eu não acho que funciona, e é muito provável que saia pela culatra. Houve um tempo na década de 1980 em que radicais do movimento dos direitos dos animais começaram a recorrer à violência”.

“Bombas que foram enviadas aos cientistas, certamente muitas ameaças foram feitas, danos à propriedade, alguns deles bastante extensos – incendiando laboratórios que estavam prestes a ser construídos e assim por diante”.

“Individualmente, você podia entender por que as pessoas estavam fazendo isso, elas estavam muito frustradas com a falta de mudança. Mas o resultado foi muito ruim para o movimento – isso significava que aqueles que defendiam essas práticas em animais poderiam rotular o movimento como terrorista”.

“Isso significava que os líderes políticos não falariam sobre isso, eles diriam que não iam falar com terroristas. E levou um bom tempo para que isso fosse superado. O movimento progrediu melhor desde então. O mesmo pode acontecer com o movimento climático”.

Há, ainda, uma razão menos instrumental pela qual Singer vê protestos violentos como algo inaceitável. “Processos decisórios pacíficos são extremamente valiosos, e queremos protegê-los e preservá-los, não queremos colocá-los em perigo, e se as pessoas de esquerda, ou das causa verde, começarem a não respeitar formas pacíficas de tomada de decisões, haverá alguns da direita que farão o mesmo, e muitas vezes eles têm mais influência sobre os militares de um país. É muito mais provável que isso funcione em benefício da direita”.

Palavras de sabedoria

O conselho de Singer para estudantes e ativistas de hoje – “pense estrategicamente sobre o que você pode alcançar e quais táticas irão ajudá-lo a alcançá-lo. Não perca de vista esses objetivos, mas pense sempre em formas práticas de progredir para alcançá-los. Não sou fã de gestos vazios que não sugerem um caminho para atingir o tipo de mudança que você quer ver”.

Desde palestras de ética até protestos de rua ou doações bilionárias, a influência de Peter Singer pode ser sentida em todos os lugares. À medida que o mundo começa a se reconstruir, aqueles que lutam por um futuro melhor podem ouvir a palavra do homem que fez o mundo se importar mais.

*Artigo publicado originalmente pelo portal Palatinate, jornal independente da Universidade de Durham

Fonte:

https://www.anda.jor.br/2020/05/pense-estrategicamente-diz-peter-singer/