Os símios que habitam em nós
postado em 28 set 2007

(Reprodução de matéria publicada no Jornal O Estado em 23.09.2007)

Com exemplos hilariantes, primatólogo revela a natureza humana pelo comportamento dos animais

Elias Thomé Saliba
Especial para o Estado

Em 1927, Ortega y Gasset dizia que, quando ríamos diante das macaquices de um símio, experimentávamos nossa singular capacidade de “ensimesmamento” e reflexão, face à pura alteração fisiológica do animal. Com os últimos avanços da primatologia, tal argumento, contido num famoso ensaio do filósofo espanhol, tornou-se hoje completamente insustentável. As pessoas riem dos primatas no zoológico porque se sentem desconcertadas com o espelho que lhes é posto à frente – eles despertam certo nervosismo histriônico, porque nos mostram nós mesmos sob uma luz brutalmente honesta. Isto se o bicho for um chimpanzé – porque se for um bonobo então, as reações poderão ser de camaradagem, cumplicidade e, até , de empatia.

Antigamente designados como “chimpanzés-pigmeus” ou “macacos de Vênus” – os bonobos só foram descobertos em 1929, num museu colonial belga, completamente deslocados do seu luxuriante hábitat africano. Eles têm o corpo gracioso e elegante, tronco esguio, ombros estreitos, pescoço fino, mãos de pianista e a marca inconfundível no seu penteado: uma cabeleira negra alinhadamente repartida ao meio. Seu nome provavelmente nasceu de um erro de grafia num caixote remetido de Bolobo – cidade à beira do Rio Congo. Mas o nome pegou e a palavra adquiriu um som alegre, absolutamente condizente com a bonomia do animal. Os franceses chamam os bonobos de “chimpanzés da Rive Gauche” – não apenas pelo fato de habitarem a margem esquerda do Rio Congo, mas por apresentarem comportamento de “vida alternativa”, estilo “paz-e-amor”. Já os primatólogos de língua inglesa incorporaram à fala usual a expressão “vamos bonobar hoje à noite” – que é, assim, uma espécie de explícito e inequívoco convite à farra.

Os bonobos são os principais personagens de Frans de Waal – um dos mais respeitados primatólogos do mundo – em Eu, Primata – Porque Somos como Somos faz uma exploração divertida do comportamento dos animais que vem contrariar a maré de pessimismo cientificamente esclarecido sobre a natureza humana. Somos muito mais propensos a culpar a natureza pelo que não gostamos em nós do que a dar-lhe crédito pelo que apreciamos. Waal questiona esta propensão com exemplos hilariantes e argumentos convincentes. Décadas atrás, com a descoberta do lado sombrio do chimpanzé, Rousseau saiu por uma porta e Hobbes entrou por outra. A violência dos grandes primatas decerto significava que somos programados para ser impiedosos. Com os excessos darwinistas, muitos pensam que a sobrevivência dos mais aptos significa a aniquilação dos inaptos. Mas também se pode vencer a corrida evolutiva tendo um sistema imunológico superior ou sendo mais habilidoso para encontrar alimento. O livro de Waal desenvolve o argumento de que em nós existe tanto o lado chimpanzé – pouco amistoso e, não raro, violento – como o lado bonobo – cooperativo, amigável, detestando conflitos – em resumo, símios perfeitamente do “Dêem uma chance à paz”. Chimpanzés resolvem questões de sexo usando poder e bonobos resolvem questões de poder com sexo. Se descobrirmos que os bonobos são melhores que meros brutos – ainda que ocasionalmente -, a própria noção de bondade como invenção humana começará a balançar.

Bonobos, mais ainda que os cães e outros bichos – com sua extraordinária sensibilidade para a linguagem corporal – nos ensinam como desprezamos, cada vez mais, todo o fascinante universo da nossa comunicação não-verbal. É muito difícil enganar um bonobo, sobretudo porque eles não possuem aquela forte distração proveniente da linguagem falada. Atribuímos tanta importância à comunicação verbal que perdemos a noção do que o nosso corpo diz sobre nós. Waal cita o notável estudo do neurologista Oliver Sacks, no qual um grupo de pacientes clínicos afásicos – incapazes de compreender palavras -, desenvolvem apuradíssimo senso de todas as indicações não-verbais: por isso eles acabam rindo de um discurso de Reagan na TV. Por isso, atenção: não tentem blefar, pregar peças ou mentir para um afásico – ainda mais se os espertalhões forem políticos, deputados ou senadores – pois acabarão fatalmente desmascarados!

Difícil mapear emoções em espécies como Bonobos – mas as pequenas histórias narradas por Waal surpreendem. Bonobos são capazes de empatia: mostram-se, em situações de sofrimento e aflição, capazes de se colocarem no lugar dos outros. Óbvio que há um lado programático e quase automático nessa empatia: a aflição causada pelo sofrimento alheio tem enorme valor para a sobrevivência da espécie – e se os outros demonstram medo e aflição, pode haver boas razões para você também se preocupar. Mas os bonobos vão além: eles chegam a quebrar regras em favor da empatia. É aqui que chega a hora de lembrar não apenas o lado “primata-mau” dos homens, mas também o seu “lado-bonobo”. Quando Oskar Schindler manteve judeus fora dos campos nazistas, havia ordens claras de sua sociedade sobre como tratar aquelas pessoas – mas os sentimentos de Schindler interferiram. Em 2004, Yosef Lapid, ministro israelense, questionou planos do seu próprio Exército para demolir milhares de habitações palestinas porque viu uma velhinha ajoelhada no chão das ruínas de sua casa, procurando seus remédios: “O que eu diria se fosse minha avó?”, exclamou. (Sua avó havia sido vítima do Holocausto.) É certo que os bonobos também brigam entre si – mas demonstram uma tal ansiedade para superar o conflito, que acabam por recorrer a formas de conciliação onde as emoções prevalecem sobre as regras. Será que precisamos dos bonobos para nos convencer de que a empatia é a única arma no repertório humano capaz de nos livrar da xenofobia? De qualquer forma, eles nos ensinam que, também nós, quando resolvemos dilemas morais, confiamos mais em nossos sentimentos do que no raciocínio. Aliás, se o cristianismo não fosse uma religião tão etnocêntrica, poderia perfeitamente colocar um bonobo em lugar do Bom Samaritano, que o bondoso macaco não faria feio na conhecida parábola bíblica.

Waal nos deu um livro importante, que mostra que as definições sobre a singularidade e o lugar especial da humanidade no Universo são cada vez mais caracterizadas por padrões que vão sendo sucessivamente abandonados – que lembram aquelas traves de gol móveis no campo de futebol – que recuam cada vez que novas descobertas acontecem. Enquanto isso, os bonobos do Centro Nacional Yerkes, em Atlanta, vão continuar a ouvir a canção que mais apreciam, na voz de Louis Armstrong: “Quando você sorri, o mundo inteiro sorri junto”.

Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor, entre outros livros, de Raízes do Riso