O Resgate Internacional do GAP
postado em 25 fev 2004

A NOVELA BOLIVIANA
Era meia noite de quarta-feira, dia 18 de fevereiro passado, quando o caminhão da Transportadora Wind, aproximou-se do complexo de recintos, onde as duas chimpanzés da Bolívia – Quennie e Francis – possivelmente ficarão por muitos anos e talvez até o fim de seus dias. Uma novela que durou mais de 7 meses chegava ao fim. Estávamos no Santuário a espera; na cabine do caminhão estavam o Dr. Adauto Nunes, veterinário brasileiro e Daniel Caballero, Supervisor de Zoológicos, da Bolívia, exaustos pela tensão e horas sem dormir. Eles desceram do caminhão e nos abraçaram, comemorando com jubilo o fim deste resgate internacional, rodeados de fatos absurdos e até incríveis.

A CHEGADA AO SANTUÁRIO

A gaiola de transporte com as duas chimpanzés pesava mais de 400 quilos e foi colocada em frente ao cambeamento, por onde as duas primatas sofridas passariam para iniciar uma vida nova. Abrimos as portas e elas ainda confusas, cansadas, porém com desejos profundos de sobreviver, entraram em seu pequeno paraíso sem grades, com grama sob seus pés e o céu aberto onde as estrelas fulguravam em uma noite sem nuvens. Começaram a reconhecer o território, com cuidado e um certo medo; poderiam pensar que seria outra armadilha sinistra que os humanos lhe prepararam. Enquanto reconheciam o seu novo mundo, começamos a trocar informações sobre o acontecido nos últimos dois dias e as dificuldades sofridas.

O INÍCIO DO CALVÁRIO

A Novela Boliviana iniciou-se há mais de 7 meses, quando e-mails desesperados da Bolívia e de algumas ONGs internacionais, foram enviados ao Projeto GAP Brasil, solicitando ajuda para salvar duas chimpanzés em um desconhecido Zoológico de La Paz, na Bolívia, onde estavam marcadas para morrer. O GAP Internacional solicitou formalmente nossa intervenção, que já tinha sido iniciada por telefone. Dias mais tarde, o Dr. Miguel Vaudano, Coordenador Adjunto do GAP no Brasil, esteve em La Paz, se informando sobre a situação e tentando intermediar uma solução. Grupos antagônicos na Prefeitura de La Paz brigavam: uns pela vida e outros pela morte. Ninguém no mundo aceitaria aquelas chimpanzés esquecidas, que estiveram em um laboratório de pesquisa médica e depois passaram a viver em um zoológico norte-americano, no Colorado. A solução foi dada por nós, transferindo-as para o Santuário do GAP que era a única alternativa razoável. E por esse caminho começamos a trabalhar. Várias pessoas e organizações na Bolívia reuniram-se a fim de ajudar; Daniel Caballero, que acompanhou as duas chimpanzés até o Brasil, foi o líder desse grupo. Ele nunca perdeu a fé, insistiu com todos os envolvidos e conseguiu que a Prefeitura assinasse um Termo de Doação, e o Ministério do Meio Ambiente liberasse a permissão oficial. O passo seguinte foi conseguir a aprovação brasileira, então a compreensão foi imediata e muito maior, em que o IBAMA de Brasília se ofereceu para liberar a permissão e facilitar que todo o trâmite fosse feito rapidamente. O Dr. Francisco Luiz Câmara Tavares, do CITES/ Brasil e o Dr. Ricardo José Soavinski, Coordenador Geral de Fauna, deram o seu apoio muito importante neste momento crucial.

GOVERNO DEPOSTO

Com a documentação do IBAMA pronta, fomos ao Ministério da Agricultura para que emitissem a Licença de Importação correspondente, que também foi obtida em poucos dias. A documentação brasileira estava pronta e foi enviada à La Paz. Enquanto a papelada tramitava, o Governo Boliviano foi deposto e um Governo Provisório foi empossado, novas autoridades assumiram e muitos trâmites da parte boliviana tiveram que ser refeitos.

O EMBARQUE

O momento final se aproximava: o embarque. O Dr. Adauto foi para La Paz no dia 16 de fevereiro à noite. No dia seguinte, 17 de fevereiro, ele colocou as duas chimpanzés na gaiola de transporte enquanto Daniel Caballero preparava os trâmites finais. A imprensa da Bolívia já estava a par da viagem, muitos manifestavam a favor já que era a única forma de mantê-las com vida. Daniel deu entrevistas até pelo seu celular enquanto movimentava-se por La Paz. O problema agora eram o peso e o tamanho da gaiola. Se pesasse mais de 500 quilos não poderia embarcar no avião de passageiros e se ultrapassasse certas medidas não caberia. Não havia balança para confirmar até chegar ao Aeroporto de El Alto, no entanto o peso foi inferior. O problema passou a ser o tamanho. Adauto e Daniel tiveram que descer do avião com a bagagem já que a gaiola não entrava. Na última tentativa, por poucos centímetros a gaiola entrou no compartimento posterior. Os passageiros do avião aplaudiram, quando Adauto e Daniel entraram novamente, e o comandante deu a voz de partida.

A ODISSÉIA NÃO TINHA TERMINADO

A odisséia não tinha terminado. Chegando a Cumbica, em Guarulhos – SP, a tramitação dos papéis iniciou-se, que aqui no Brasil não é pouca. O problema surgiu com a ausência do Certificado Sanitário Internacional. Na Bolívia não existe esse certificado, o qual é assinado por um veterinário oficial do Ministério da Agricultura em qualquer país, exceto lá. O certificado estava assinado por um veterinário, porém sem o carimbo do Ministério. Desde às 13:00 horas a gaiola ficou na pista do Aeroporto Internacional. Os soldados da Aeronáutica vieram, olharam e liberaram a sua parte. Após várias horas chegaram a uma solução, assinamos um Termo de Fiel Depositário até que a Bolívia nos enviasse um certificado carimbado por alguma autoridade. O Despachante TANROB, que nos deu assistência no desembaraço aduaneiro, redigiu o documento, deu entrada da Declaração de Importação e somente às 21:30 horas foi autorizada a saída do Aeroporto rumo a Sorocaba.

ELAS SÃO DIFERENTES

Francis e Quennie são diferentes dos outros chimpanzés do Santuário. Elas se escondem dos humanos. Uma delas, não sabemos qual, já que na Bolívia ninguém sabem quem é cada uma, ficam longe nos observando a distância. Comem apenas frutas básicas, nada de sucos, iogurtes, leite, bolos, etc. o que os demais adoram. Trouxemos Guga para transmitir confiança e então reagiram melhor, procurando contato conosco. Depois mostramos outros bebês chimpanzés para elas e assim se aproximaram ainda mais. Será um trabalho lento e penoso, porém elas saberão que nem todos os humanos são ruins. Que elas não precisam mais se exibir para ninguém, nem trabalhar e serem espetadas por agulhas de experiências médicas sem sentido. Elas saberão muito em breve que estão em um Santuário, rodeadas de membros de sua espécie, humanos e não humanos, que só torcem para que sejam felizes.