Fernando Reinach*, O Estado de S.Paulo
30 Junho 2018 | 02h00
Até o inicio do século 20, o mundo interno dos animais não era um problema para os cientistas. Parte da humanidade acreditava que os animais, por não possuírem alma ou consciência, simplesmente não tinham vida interna, não sentiam, pensavam ou possuíam imaginação semelhante à nossa. Para essas pessoas, animais eram nada mais que máquinas automáticas que habitavam o planeta.
Esse tipo de pensamento embasava nosso direito de matar e explorar qualquer animal (o que incluía seres humanos de outras raças). Pessoas com esse tipo de pensamento ainda existem. Outra parte da humanidade, que incluía as pessoas que interagiam com cães, acreditavam que muitos animais tinham sentimentos e pensamentos muito semelhantes aos que existem em nossos cérebros. Foram essas pessoas que iniciaram os movimentos de proteção aos animais, alegando que eles teriam direitos semelhantes aos dos seres humanos. Essa visão antropocêntrica ainda é bastante comum nas sociedades modernas. Nenhum dos dois grupos sequer considerava a possibilidade que os animais talvez tivessem sim um mundo interno, mas completamente diferente do nosso, ao qual dificilmente teríamos acesso.
Tudo começou a mudar com os estudos de Konrad Lorenz (1903-1989), que ganhou o Prêmio Nobel em 1973. Entre suas descobertas está o fenômeno do “imprinting”. Ele demonstrou que muitas aves, como os patos, consideram seus pais a primeira figura que enxergam ao sair do ovo. É famosa a foto de um grupo de patinhos seguindo Lorenz pelo jardim, imaginando que ele era sua mãe.
Mas o que levou os cientistas a considerar que talvez todos os animais tivessem um mundo interno próprio foi um pequeno livro publicado em 1934 por um biólogo chamado Jakob von Uexküll. Nesse livro, o ensaio mais importante é o que tenta descrever o mundo interno de um carrapato. O ciclo de vida desses carrapatos, como conhecido na época, é relativamente simples. Os ovos eclodem no chão e os recém-nascidos sobem até a parte mais alta de uma folha de grama ou arbusto. E ficam lá esperando a vítima. Quando a vítima se aproxima, os carrapatos se soltam, caminham sobre a vítima, inserem seu aparato bucal na pele da vítima e sugam seu sangue. Aí se soltam, caem no chão, e as fêmeas colocam seus ovos e o ciclo recomeça.
O que havia sido descoberto por volta de 1920 é que os carrapatos são cegos e não enxergam a vítima, mas são capazes de detectar o cheiro do ácido butírico, presente no suor de muitos mamíferos. Assim, se você passar com um algodão embebido em ácido butírico perto de um grupo de carrapatos, eles se soltam imediatamente, mas acabam caindo no chão. Quando os carrapatos se soltam, eles podem cair em uma superfície quente (um animal) ou em uma superfície fria. Se a superfície for quente, eles vão morder e chupar o sangue. Se ela é fria, eles sobem novamente no galho. O que havia sido descoberto é que para o carrapato o que importa é a temperatura da superfície. Se eles caem sobre um balão cheio de água morna, vão tentar sugar a água. Se o balão estiver com água fria, eles desprezam o balão e tentam subir novamente para aguardar uma nova presa. O interessante é que eles não se importam em distinguir o que estão chupando, se for quente está valendo, deve ser sangue.
O que Uexküll argumenta é que um animal como o carrapato possui um mundo interior próprio, apesar de simples e quase incompreensível para um ser humano. Um mundo composto por alguns sinais captados no meio ambiente, como a presença de ácido butírico, o calor de uma superfície e um desejo que o leva a subir em uma folha, se soltar e perfurar qualquer superfície quente. Mas, dentro desse repertório limitado de sensações, deve existir um sujeito que decide e age com base nas suas percepções do que é para ele o mundo externo e a imagem que cria internamente desse mundo. Ou seja, o mundo do carrapato existe e não somente é muito diferente de nosso mundo, mas é quase inacessível à nossa compreensão. Em outros capítulos, Uexküll tenta descrever o mundo em que vivem os insetos, as aves e o cachorro.
Após ler esses ensaios, é difícil não acreditar que cada animal vive em um mundo particular. É bom lembrar que nós não somos os animais que captamos mais informações: alguns peixes sentem campos elétricos, insetos enxergam luz com comprimentos de onda que nossos olhos sequer sabem que existem, morcegos possuem sonares, cães ouvem sons que não estão acessíveis a nossos ouvidos e aves sentem o campo magnético da Terra. Portanto, como é possível acreditar que esses animais não possuem um mundo interior ou que possuem um mundo interior semelhante ao nosso. Tente imaginar como um morcego “sente” um objeto na sua frente utilizando o sonar ou como um peixe “sente” os objetos que causam mudanças nos campos elétricos.
MAIS INFORMAÇÕES:
No livro de Jakob Von Uexküll (1934), a Foray into the Worlds of Animals and Humans. Tradução para o inglês de J.D. O’Neill, University of Minesota Press (2010)
*É biólogo
Fonte:
https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,o-mundo-interno-dos-animais,70002377550