Resgatar bichos de cativeiros ilegais é só o começo do trabalho de Marcelo Rocha. A tarefa mais difícil é devolvê-los à vida selvagem (por Margarida Telles)
O dia a dia de Marcelo Pavlenco Rocha daria um seriado policial de TV. Ele participa de investigações de comércio irregular junto com a polícia e atua nas batidas aos centros de tráfico. Usa disfarces, como de pastor evangélico ou vendedor de ração, para descobrir cativeiros ilegais. Descobre onde os criminosos guardam suas mercadorias. Apenas um detalhe foge do enredo dos programas policialescos. Ele não liberta pessoas sequestradas, mas animais silvestres. Rocha é fundador e diretor da organização SOS Fauna, uma das principais entidades de resgate e recuperação de animais no país. Sediada em Juquitiba, na região da Grande São Paulo, atua principalmente no Estado, mas participa de operações em outras regiões.
O trabalho de Rocha tem um valor ético. Ele salva bichos em situações de degradação, como gaiolas superlotadas, porta-malas de carros, caçambas de caminhões e jaulas apertadas em feiras. Além disso, ajuda a desfazer redes de tráfico que ameaçam a diversidade nas matas e podem levar espécies à extinção. Mas a apreensão é apenas a face mais visível de seu cotidiano. Após o resgate, começa o trabalho de levar os bichos de volta à natureza.
Rocha aprendeu a amar os animais na infância. Seu pai era gerente de uma fazenda em Goiás. Tinha ordens de atirar para matar as onças que atacassem o gado. Mas desobedecia. “Quando encontrava um bezerro morto, ele o escondia, para não perseguirem a onça”, diz Rocha. Formado em eletrônica, começou em 1989 a acompanhar as denúncias de tráfico de animais. Tentou entrar em grandes ONGs. Acabou criando a sua. Hoje, os viveiros da SOS Fauna abrigam 400 pássaros.
A trajetória dos animais resgatados até a liberdade é complicada. “O primeiro desafio, ironicamente, é sobreviver ao resgate. É quando a polícia retira os animais de depósitos clandestinos, gaiolas empilhadas em feiras ou da caçamba de caminhões parados nas estradas.” A maioria dos animais não sobrevive ao frio, ao transporte e principalmente ao estresse da movimentação das pessoas, das luzes e do barulho.
Quando o animal sobrevive, começa outro desafio: descobrir exatamente de onde ele veio, para estudar se é viável devolvê-lo à natureza. Então começa o processo de prepará-lo. Primeiro, é preciso garantir que o animal não tenha nenhuma doença contraída entre os humanos. Em seguida, os veterinários têm de reeducar os bichos. Há dois anos, a SOS Fauna recebeu um grupo de 40 papagaios que vieram de residências. “Cada um gritava uma coisa”, diz Rocha. “Um procurava o ‘tio’, o outro xingava e um terceiro até cantava o hino do Corinthians.” Hoje, as aves estão com menos traços humanos. Recuperaram sua vocalização selvagem, aprenderam a voar e estão quase aptas para deixar o cativeiro. Esse aprendizado pode demorar. Um tucano levou sete meses para deixar o semicativeiro, estágio em que o bicho fica solto, mas ainda dispõe de comida oferecida pelo homem. “Finalmente, encontrou um par e levantou voo.”
O esforço pode não ser viável para todos. Só em 2009 o Ibama (órgão ambiental federal) resgatou mais de 18 mil animais no país. “É muito oneroso fazer uma reintrodução”, afirmou o Ibama. “Isso exige que cada animal faça vários exames laboratoriais e um acompanhamento na natureza, com caros equipamentos de monitoramento.” O órgão recomenda a doação dos bichos para criadouros particulares legais ou zoológicos. Alguns são ainda mais radicais. A Sociedade Brasileira de Ornitologia aconselha a eutanásia nos casos em que a espécie não corre o risco de extinção e tem excedente em cativeiro.
Não são só os bichos traficados que precisam de ajuda. Alguns animais silvestres acabam reféns da expansão das cidades. A ONG Mata Ciliar, de Jundiaí, em São Paulo, recebe em média 45 animais por semana. Um, recente, foi uma onça atropelada. Durante o período na ONG, só uma pessoa cuidava dela – e evitava ser vista, para não criar intimidade. Os esforços foram recompensados. Transferida para uma jaula na floresta, a onça demonstra ter mantido seus instintos. Já caçou e perdeu os quilos extras do cativeiro. O próximo passo é a liberdade. Em troca, ela vai prestar um servicinho aos pesquisadores da Mata Ciliar. Levará um transmissor de rádio atado ao pescoço para ajudá-los a entender os hábitos dos felinos e facilitar a adaptação dos próximos resgatados.
Fonte: Revista Época – edição 668 de 07/03/2011
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