(Reprodução de matéria publicada na Revista O Eco – 21/08/2007)
Carla di Cologna
Na madrugada do dia 29 de setembro de 2006 a polícia rodoviária de São Paulo apreendeu 192 filhotes de papagaios verdadeiros (Amazona aestiva). Eles estavam no porta-malas de um monza na rodovia Castelo Branco, próximo ao município de Tatuí. Encaminhados ao zoológico de Sorocaba, 120 foram distribuídos para criadouros autorizados e 72 levados à ONG S.O.S. Fauna. “Nos negamos recebê-los porque não tínhamos onde colocá-los”, diz Marcelo Pavlenco Rocha, presidente da organização. “Mas a veterinária estava desesperada”.
As aves, com hipotermia, foram distribuídas em caixas plásticas forradas com cal, jornal e forragem, e eram alimentadas três vezes ao dia. Conforme cresciam, se recusavam a receber alimento por sonda. Pavlenco construiu recintos para onde as levou pouco a pouco, até se adaptarem. Tiveram que aprender a comer sozinhas e hoje, quase dez meses depois, 68 delas continuam ali, esperando para ser devolvidas ao local de origem. Quatro morreram. Além de pôr em risco a sobrevivência de espécies ameaçadas de extinção e de submeter esses bichos a condições de captura e de cativeiro muitas vezes cruéis, o tráfico gera dificuldades até mesmo quando a repressão tem sucesso. Faltam lugares que recebam esses animais. Os zoológicos já estão lotados. E a reabilitação e soltura das aves no seu habitat natural demanda envolvimento de diversos órgãos, cuja prioridade definitivamente não tem sido esta.
Impunidade
A favor dos traficantes figura ninguém menos que a Lei de Crimes Ambientais de 1998, criada justamente para punir esse tipo de prática. A pena, que varia de seis meses a um ano, pode ser cumprida em liberdade com prestação de serviços à comunidade, pagamento de multa, fiança ou cesta básica. Branda, a legislação pode desestimular a polícia a fazer o seu trabalho. Essa é a opinião do delegado Murilo Fonseca Roque, da 7ª Seccional de Itaquera, zona Leste de São Paulo, que recentemente apreendeu 401 aves.
Depois de 50 dias de investigação e de ter de soltar o mesmo traficante por três vezes neste período, o delegado obteve resultados na quarta apreensão. Havia cinco pessoas com o traficante, o que permitiu acusá-lo por formação de quadrilha e levá-lo à prisão. “Vários comerciantes foram identificados nas gravações que fizemos e outras pessoas serão indiciadas”, afirma o delegado. “É impressionante. Eu não fazia idéia do tamanho do tráfico em São Paulo”.
Este foi um caso raro. Nem na maior apreensão de tráfico de animais silvestres no estado, que aconteceu em março de 2003, os envolvidos foram punidos. Pegos em flagrante com quatro mil aves, 150 sagüis e algumas iguanas na traseira de um caminhão-baú que supostamente trazia produtos químicos de Camaçari (BA), um casal e o motorista assinaram um termo circunstanciado, que registra delitos de menor importância, e foram liberados. Assim como determina a lei.
Segundo o promotor de Justiça Luís Paulo Sirvinskas, isso acontece porque não existe um artigo penal específico para o tráfico de animais silvestres. Ele se encaixa no artigo 29 da seção dos crimes contra a fauna, que pune “matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida (…)”. Em nenhum momento é caracterizado o tráfico.
Para o promotor, a atividade deveria ser inafiançável. Tramita no Congresso desde 2004 projeto de lei da deputada Denise Frossard, do Rio de Janeiro, que aumenta a pena de reclusão de um a três anos. A última ação, no entanto, ocorreu ainda em 2004. E, como o próprio Sirvinskas disse, “o meio ambiente não espera”.
Encarcerados
Depois de traficados, os animais vão parar em feiras livres nas periferias, pet-shops, depósitos clandestinos e sacoleiros, que os vendem de casa em casa. “Existe a cultura do passarinho nos bairros pobres. Todo mundo quer ter um em casa”, explica Pavlenco. O consumidor final é o principal colaborador do tráfico. Para Vincent Kurt Lo, analista ambiental do Ibama, as pessoas não sabem os riscos que correm e não pensam na ilegalidade. “Não entra só a questão das zoonoses, mas do prejuízo em termos de biodiversidade e da ameaça de extinção”, explica.
A fiscalização ostensiva fica por conta da Polícia Militar. O Ibama, com cerca de 40 fiscais no estado, prioriza as grandes quantidades e as rotas (rodovias), mas atua também na educação ambiental, nas alternativas de recepção dos animais e no controle dos criadouros. Quanto às apreensões ilegais em casas e apartamentos, o analista ambiental enfatiza: “Não é educativo mantê-los nas casas das pessoas, que normalmente afirmam cuidar bem do animal. Mas não há justificativa. Os animais não estão em um ambiente silvestre. Não comem direito, se alimentam com pão e chocolate, não reproduzem. As aves não voam”, diz Kurt Lo.
No entanto, desde 2004 foi apresentado ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) o Termo de Guarda Doméstica de Animais Silvestres. A resolução quer regularizar a criação de animais silvestres em ambiente doméstico. Segundo o documento apresentado ao Conama, até 1967 as atividades de captura e cria eram legais, sendo proibidas com a Lei da Fauna, instituída em janeiro daquele ano.
A idéia seria beneficiar os animais impossibilitados de retornar ao habitat e de serem encaminhados às instituições registradas. Mas, para Kurt Lo, é um desserviço deixar o animal com o infrator. “Além de incentivar o tráfico, deixam de investir em programas de soltura”, diz.
Falta recurso
O problema da apreensão, segundo o delegado Murilo Fonseca Roque, começa na falta de informação sobre o que fazer a para onde levar os animais. “Eles chegam morrendo, em caixas de uva. Se não tiver especialista, eles morrem na nossa mão”, explica. “Ao ir até a delegacia, a SOS Fauna viabiliza o nosso trabalho, mas para cada apreensão é preciso achar uma ONG diferente. Quem fica com ave não fica com macaco, porque não são as mesmas instalações”.
Os centros de triagem no estado de São Paulo são insuficientes para abrigar todos os animais apreendidos. Nesses locais, os bichos têm assistência veterinária e recebem uma avaliação sobre condições de soltura. A ONG SOS Fauna é uma das organizações em análise para ser mais um centro de triagem. No estado as mais conhecidas são o Depave-3, da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, o CRAS, centro do Parque Ecológico do Tietê e o Cemas, Centro de Manejo de Animais Silvestres da Fundação Florestal, no Horto Florestal.
De acordo com o Ibama, só em 2005 foram apreendidos 30 mil espécimes em São Paulo. Depois de resolver o problema de onde encaminhá-las, depois dos óbitos e da recuperação, vem a problemática da soltura. “Procuramos devolver à natureza o pouco que é apreendido”, diz Kurt Lo. Existem nove áreas de soltura homologadas pelo Ibama no estado, com vegetação da Mata Atlântica, Restinga e Cerrado. Mas boa parte das aves que vêm do Norte e Nordeste precisa ser devolvida ao seu bioma de origem.
Por falta de verba, a repatriação nem sempre é possível. O Ibama paulista, com apoio da companhia aérea TAM, conseguiu em 2006 devolver 33 papagaios ao seu habitat natural, na Bahia. Segundo documento do instituto, um deles cantava parabéns a você, tinha nome e assistia televisão. No começo ficou estressado, não se dava bem com os outros da mesma espécie e tinha medo. Depois se adaptou.
Apesar de os projetos existirem, a verba continua insuficiente. Para os especialistas, uma das soluções para o drama dos animais capturados, ainda que polêmica, é a eutanásia. “A sociedade não aprovaria”, diz Pavlenco, da SOS Fauna. “Vai contra o trabalho que fazemos, mas pode ser uma saída”. Apesar dos pesares, Pavlenco continua lutando para levantar recursos e manter as aves sob seu cuidado, mesmo sabendo que muitas delas jamais terão a chance de voltar para o seu ambiente natural, seja por falta de dinheiro ou excesso de burocracia dos órgãos envolvidos.
Fonte: http://arruda.rits.org.br/oeco/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=6&pageCode=67&textCode=23676&date=currentDate&contentType=html