POLÊMICA
(Reprodução de matéria publicada na Revista Época n° 475 de 25 junho 2007)
Uma dupla de chimpanzés causa polêmica ao reivindicar direitos humanos no tribunal. Será que todos os primatas devem ser iguais perante a lei?
por Lia Bock
BEIJO POLÊMICO
No filme O Planeta dos Macacos (1968), Charlton Heston deu o famoso “selinho” na “doutora” Zira
Hiasl e Rosi não resistem a um doce e adoram documentários sobre animais selvagens. Pela TV a cabo, eles acompanham as caçadas das hienas e as aventuras dos últimos gorilas das montanhas. São jovens, têm 26 anos e levam uma boa vida na Viena de Sigmund Freud – que provavelmente os acharia, no mínimo, instigantes. Hiasl e Rosi são chimpanzés. Recentemente, viraram celebridades mundiais. Tudo porque os dois – ou, pelo menos, seus representantes legais – reivindicam a equiparação de seus direitos aos dos “primos” humanos, com quem têm em comum quase 99% do código genético.
Os chimpanzés, enquanto espécie, estão ameaçados de extinção. No caso de Hiasl e Rosi, o que estava a perigo era a dolce vita. Eles vivem em um santuário – nome politicamente correto dado aos abrigos onde os animais vivem soltos. Mas cada um deles custava 5 mil euros (quase R$ 13 mil) por mês, o que contribuiu para levar o lugar à falência. Para manter o padrão de vida dos chimpanzés, Martin Balluch, presidente da Organização Austríaca para os Direitos dos Animais, e o advogado Eberhart Theuer, de um grupo chamado Associação contra a Criação Industrial de Animais, ingressaram na Justiça para obter uma espécie de tutor legal para os dois macacos.
Não faltaram candidatos nem euros, mas na Áustria só pessoas podem ser contempladas com dinheiro alheio. Balluch, então, não se conteve: afirmou na Justiça que Hiasl e Rosi são pessoas. Estava armada a confusão. “Eles são pessoas e devem ter os direitos legais básicos”, afirma Balluch. “Direito à vida, direito a não ser torturados e a poder viver em liberdade sob certas condições.” Balluch não é uma voz solitária berrando na selva humana. “Os chimpanzés podem doar sangue a humanos e são seres sociais, com cultura própria”, diz Pedro Ynterian, presidente do Great Ape Project no Brasil. A organização luta há 14 anos pelo direito dos grandes primatas: um grupo composto de chimpanzés, gorilas, orangotangos e bonobos. E reivindica a implantação do conceito de “comunidade de iguais”.
Hiasl e Rosi, os pivôs desta história, viveram traumas causados por humanos logo na primeira infância. Foram arrancados de seu bando em Serra Leoa – país mais conhecido pelas guerras civis e por contrabando de diamantes, que foi tema de Hollywood no filme Diamante de Sangue, estrelado por Leonardo DiCaprio. Em 1982, Hiasl e Rosi ainda eram bebês quando foram levados para a Áustria por contrabandistas. Seu destino era um laboratório de vivissecção – nome dado a experiências que envolvem abrir e operar animais vivos. Para sorte deles, foram intercepta-dos pela polícia e enviados ao santuário. Lá, ganharam nome humano e viveram razoavelmente felizes até a falência do local. Seus advogados querem impedir que sejam vendidos conquistando na Justiça o direito de angariar doações. Em 9 de maio, a juíza local rejeitou o pedido. Hiasl e Rosi recorreram. Enquanto a sentença não sai, a polêmica corre o mundo dos humanos.
ELES FORAM AOS TRIBUNAIS Rosi, Hiasl e Suíça demonstram sentimentos. Isso lhes dá direitos como os dos homens?
No Brasil, há pelo menos um precedente favorável aos primatas. Em 2005, uma fêmea de chimpanzé chamada Suíça, do Jardim Zoológico de Salvador, foi considerada um “sujeito de direitos” pelo juiz Edmundo Cruz. Suíça acabara de perder o companheiro de cativeiro. Solitária, afundara numa depressão forte. Vendo o estado lastimável da macaca, o promotor Heron José de Santana, especialista em Direito Ambiental e professor da Universidade Federal da Bahia, entrou com um pedido de habeas corpus em seu nome. Santana queria que ela fosse transferida o mais rápido possível para um dos três santuários brasileiros. Infelizmente, Suíça não pôde se beneficiar de seu novo status legal. Morreu de parada cardíaca antes da libertação, com apenas 18 anos (um chimpanzé pode viver até os 70). Na sentença, proferida depois da morte, o juiz escreveu que o direito “não é estático, e sim sujeito a constantes mutações, em que novas decisões têm de se adaptar aos tempos hodiernos”. O caso tornou-se referência internacional. Para reivindicar os direitos de Suíça, o promotor, hoje presidente do Instituto Abolicionista Animal, usou argumentos surpreendentes. “Estamos falando de conceder direito a um grupo, como já foi feito com as mulheres e com os escravos”, afirma Santana. “Queremos garantir a liberdade desses nossos primos: o primeiro passo de uma luta para incluir as demais espécies da fauna.”
O que é do homem…Os principais argumentos em jogo no debate sobre os “direitos humanos” dos macacos
A FAVOR CONTRA
• Chimpanzés e bonobos têm 99% do DNA semelhante ao dos humanos. Gorilas e orangotangos, aproximadamente 97% • Chimpanzés e bonobos podem doar sangue a humanos e vice-versa• Os primatas vivem em sociedade e, como os humanos, precisam das relações interpessoais. Têm cultura própria, lembram do passado e planejam o futuro• Os animais têm sido usados de forma abusiva em laboratórios, zoológicos, circos e filmes• Ratos têm cerca de 90% do DNA semelhante ao dos humanos. Deveriam por isso ter 90% dos direitos?• Formigas e abelhas também tecem complexas organizações sociais e ninguém pensa em pedir habeas corpus para elas• O conceito de direito pode ser aplicado apenas àqueles capazes de se responsabilizar por seus atos • Ainda há um longo caminho para garantir os direitos dos humanos. É cedo para pensar em equiparar os primatas
O Vaticano e a Anistia internacional fizeram questão de marcar posição – não contra ou a favor dos chimpanzés, mas contra o debate. Compartilham da opinião de que, antes de pensar nos animais, ainda há um longo caminho a percorrer para garantir os direitos dos humanos. Organizações como Greenpeace e a WWF, entre outras, preferiram não se manifestar. O pesquisador holandês Frans Waal, professor da Universidade Emory, nos Estados Unidos, e um dos maiores especialistas em primatas do mundo, afirma que o conceito de direito pode ser aplicado apenas para “aqueles capazes de se responsabilizar por seus atos perante a sociedade”. Para o professor de Bioética Marco Segre, da Universidade de São Paulo, “a discussão é importante para superar uma visão cientificamente restrita”. Ele – como os defensores de Hiasl e Rosi – acredita que o homem precisa abandonar um olhar “umbigocêntrico”: ou seja, precisaríamos deixar de ver o mundo a partir do redondo umbigo do homo sapiens. Pelo menos uma vitória os macacos já tiveram: no início deste ano, as Ilhas Baleares espanholas deram status de “adulto dependente” a esses animais.
Fotos: Everett Collection/Keystock, Lilli Strauss/AP (2) e Agliberto Lima/AE
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG77755-6010-475,00.html