Por Jaqueline B. Ramos * / Crédito das fotos: cortesia SCB / WCBR
Kiku chegou ao grupo quando tinha cerca de 10 anos, em dezembro de 1984. Fez um vínculo especial com Halu, uma fêmea mais velha, considerada uma “fêmea idosa específica” (SSF, specific senior female, em inglês), usando a linguagem científica dos pesquisadores de campo. Com o apoio de Halu, Kiku passou a fazer parte do grupo denominado E1 e agora é a fêmea mais poderosa e influente do bando.
Com seu apoio, seu primeiro filho, Nobita, foi macho alfa por cerca de 10 anos, até 2018/2019. Depois, Kitaro, o segundo filho de Kiku, tomou seu lugar. Além disso, a análise de DNA revelou que a maioria dos bebês do grupo E1 são netos de Kiku – os machos alfa geram mais bebês do que outros.
De acordo com especialistas em primatas do Primate Research Institute (PRI), da Universidade de Kyoto, Japão, Kiku é um exemplo de bonobo fêmea de muito sucesso e sua história ajuda a entender como a sociedade dos bonobos funciona – fornecendo, portanto, informações importantes para programas de conservação do grande primata africano .
Na verdade, Kiku faz parte de um dos grupos de bonobos selvagens que têm sido observados e estudados por pesquisadores japoneses desde a década de 1970 nas florestas da área de Wamba, a aproximadamente 1000 km de Kinshasa, na República Democrática do Congo (RDC).
Bonobos (Pan paniscus) é uma espécie de grande primata conhecida por viver em grupos geralmente de forma mais pacífica, nos quais as fêmeas têm um papel muito estratégico na colaboração para organização e na regulação da tensão. Seu habitat são as florestas localizadas no sul do rio Congo, na RDC.
Infelizmente, os bonobos são considerados uma espécie em perigo de extinção (endangered, segundo a lista vermelha da IUCN), com sua população diminuindo na natureza devido principalmente à perda de habitat e caça para comércio ilegal, consumo de sua carne e venda de filhotes como animais de estimação. Essas pressões foram agravadas pelos movimentos de conflitos políticos e interesses corporativos (mineração e desmatamento) que surgiram na região nas últimas décadas.
Após as guerras civis que assolaram o país de 1996 a 2003, distúrbios sociais e econômicos levaram a uma pressão astronômica de caça à vida selvagem. O número de bonobos selvagens foi estimado em abaixo de 10.000 indivíduos naquela época. Estudos mostraram que o número de pessoas que comiam bonobos, por exemplo, aumentou em consequência da guerra.
É comum observar muitas fêmeas e filhotes juntos em um grupo de bonobos, brincando, fazendo grooming e dividindo comida
Os esforços dos pesquisadores japoneses para saber mais sobre os bonobos e colaborar com sua conservação na RDC datam de 1973, quando o renomado primatologista Takayoshi Kano conduziu sua pesquisa de campo pioneira cobrindo uma grande área de centenas de quilômetros em uma bicicleta. Ele conseguiu localizar aldeias muito remotas com pessoas que não estavam acostumadas com não-africanos.
Por fim, ele chegou ao vilarejo de Wamba, onde os moradores tinham a mente mais aberta e ele podia ouvir os gritos dos bonobos da floresta. Essas pessoas são chamadas de Bongando, na língua local, e são principalmente agricultores. Eles estão culturalmente ligados à floresta, têm amplo conhecimento sobre plantas e acreditam em lendas e contos folclóricos nos quais aparecem animais, especialmente bonobos.
“Há uma forte crença entre as pessoas em Wamba de que humanos e bonobos eram originalmente irmãos na mesma família. Tradicionalmente, a caça de bonobos é estritamente proibida. Essa coexistência pacífica entre humanos e bonobos é a razão pela qual a pesquisa sobre bonobos foi estabelecida em Wamba”, explica o professor Takeshi Furuichi, do Departamento de Ecologia e Comportamento Social do PRI e membro do Comitê Wamba para Pesquisa de Bonobos (Wamba Committee for Bonobo Research, WCBR, em inglês).
O WCBR é um grupo de pesquisadores principalmente nas áreas de primatologia, antropologia e ecologia que atuam na área de Wamba e nos arredores, entre eles especialistas congoleses. Desde que o professor Kano e sua assistente, Suehisa Kuroda, conseguiram habituar** o primeiro grupo de bonobos na área em 1974 e começaram a observá-los de perto, dados valiosos sobre sua dinâmica populacional e história de vida foram coletados, contribuindo substancialmente para o conhecimento científico sobre o comportamento dos bonobos.
Atualmente o WBCR está observando quatro grupos de bonobos, 140 indivíduos no total – a bem-sucedida fêmea Kiku é um deles. Destes, dois grupos, denominados E1 e PE (cerca de 70 indivíduos), são acompanhados diariamente, desde a manhã até a arrumação dos ninhos para dormir.
“Cada bonobo tem um nome e podemos distingui-los pelas características faciais e corporais. Essa metodologia é extremamente útil para estudos comportamentais ”, aponta Furuichi. A habituação e nomeação de cada indivíduo na pesquisa de campo é chamada de “método japonês” e foi desenvolvida nos anos pós Segunda Guerra Mundial.
No início, o método foi criticado pelos zoólogos ocidentais, que sugeriam que seria uma forma errada de antropomorfismo, mas as evidências mostraram seu alto valor científico e a metodologia é comumente usada até hoje por pesquisadores de primatas.
No final dos anos 1980, o trabalho de pesquisa de campo na região de Wamba já era uma referência internacional e os especialistas identificaram a necessidade de se estabelecer uma área protegida para bonobos, devido a solicitações de dentro e de fora do país.
A primeira ideia era a implantação de um Parque Nacional, mas os pesquisadores japoneses foram extremamente contra, porque isso significava que as pessoas da área teriam que se mudar e ser banidas dos recursos da floresta.
“Já sabíamos que a pesquisa de bonobos e a vida das populações locais eram indissociáveis e deviam se desenvolver juntas”, diz Furuichi. “Quando as pessoas são ameaçadas, as florestas e os animais também estão em risco”.
Em vez disso, decidiu-se estabelecer, em 1990, a Reserva Científica Luo, uma área de 481km2 ligada ao Ministério de Pesquisa Científica e Tecnologia da RDC. Desde então, pesquisas têm sido realizadas nesta área, mas sofreram um grande impacto e foram interrompidas após o início de distúrbios políticos em 1991, seguido por duas guerras civis que duraram até 2003.
As atividades foram totalmente retomadas após a guerra e, a essa altura, os especialistas japoneses deram mais uma contribuição muito importante. Em 2004, eles fundaram o grupo Apoio à Conservação de Bonobos (Support for Conservation of Bonobos, SCB, em inglês), uma organização sem fins lucrativos para conduzir especificamente atividades de conservação para bonobos selvagens, ajudar na subsistência da população local e promover atividades de arrecadação de fundos para doações ao santuário de bonobos Lola ya Bonobo, em Kinshasa.
O SCB construiu o único hospital na vila de Wamba em 2011 e oferece suporte para a compra de suprimentos médicos. A organização também apoia a construção de escolas, a aquisição de materiais para alunos e professores, a manutenção e reparo de estradas e pontes e a contratação de moradores locais como guardas florestais. Também oferece bolsas de estudo para alunos do ensino médio e universitários de Wamba e arredores.
“Para proteger os bonobos, não é suficiente contar às pessoas fatos sobre o quão valiosos eles são. Precisamos mostrar às pessoas que há benefícios com sua proteção e agir para garantir esses benefícios”, finaliza Furuichi.
** https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/9781119179313.wbprim0288
* Jornalista e redatora independente da Ambiente-se Comunicação – https://www.ambientesecom.net – e Gerente de Comunicação do Projeto GAP Brasil / Internacional. Natural do Rio de Janeiro, Brasil, atualmente morando em Nagoya, Japão.