Não pensei que algum dia iria escrever estas linhas. Guga era meu oitavo filho. Todos os anteriores, primatas humanos; ele era não-humano, porém para mim não tinha diferença, talvez por sua fragilidade, pelos perigos que enfrentava todos os dias, numa sociedade brutal e injusta de humanos, precisava de mais proteção e cuidados.
Dois meses atrás veio quase rastejando ao encontro da veterinária Juliana Kihara e se entregou com uma doença que ele não entendia e o destruía internamente. Possivelmente um tumor de pâncreas minava suas defesas e sua força, mas ele era um lutador, nasceu num Zoológico, foi vendido ilegalmente após poucos dias do seu nascimento e arrancado do convívio com sua mãe. Ele nos encontrou, nunca tínhamos convivido com um chimpanzé. Tínhamos um Criadouro Conservacionista em Sorocaba com pequenos primatas e aves.
Fomos buscá-lo em Curitiba e, numa viagem alucinante por aquela BR116 em obras perenes, o trouxemos para a nossa casa. Vivíamos num apartamento, porém já estávamos projetando a nossa mudança para uma casa, em um Condomínio em Itu. Contratamos uma babá para cuidar dele durante o dia, Vânia e eu tínhamos dois filhos entrando na adolescência que também precisavam de cuidados.
Guga tinha três meses quando o pegamos. Não tínhamos ideia de como era criar um primata não-humano, que rapidamente nos fez cruzar essa falsa barreira da Primatologia e se converteu em mais um de nós.
A nossa pretensão era que Guga morasse conosco na casa do Condomínio em Itu, o que era um loucura e tanto. Rapidamente percebemos que lá era um estranho no ninho e com muito perigos em sua volta. Nesse dia que decidimos levá-lo para o Criadouro em Sorocaba. Assim nasceu o Santuário de Grandes Primatas, que hoje abriga 50 chimpanzés e mais de outros 200 seres de outras espécies, sendo uma referência mundial no cuidado dos Grandes Primatas.
Quando avisado da doença, fui ao seu encontro, ele veio quase rastejando e colocou sua cabeça em meu colo, como fazia quando era bebê e não queria que fosse embora, e eu o deixasse sozinho. Eu cai na real, Guga poderia estar morrendo, algo que nunca imaginei. Aquele ser forte, ativo, que era quase um humano em suas atitudes e presença, sendo fatalmente fulminado por uma doença banal e absurda. A Glicose beirava nos 800, um humano já teria morrido.
A mãe dele quando chegou ao Santuário já estava ferida de morte, um câncer, possivelmente uma metástase de outro mais profundo, se desenvolvia em sua boca e em poucas semanas, de forma horrível, levou a sua vida. Talvez Guga carregava aquela genética terrível em seu corpo.
Assim começou a luta contra o inimigo silencioso, que, do interior profundo do seu corpo poderoso, o minava e o destruía. Ele era um paciente exemplar, confiava em nós, nas veterinárias, nos tratadores. O isolamos e montamos um tratamento intensivo, porém, ele ia perdendo forças, as infecções surgiam em partes do seu corpo, ele lutava como podia, nos ajudava, tomava todas as medicações, se submetia às análises, deixava extrair sangue e fazer todos os procedimentos necessários.
Dias atrás, me ligaram, ele não conseguia mover a perna esquerda, era o princípio do fim; ele já não se movimentava, rastejava, as lágrimas secaram em nossos olhos e continuavam jorrando em nossa mente. Era um Pesadelo que nunca imaginei ter que passar. Ele lutava de todas as formas possíveis, o anestesiamos e investigamos o seu corpo através de exames de imagens. O Dr. Walton Nosé e suas auxiliares vieram de São Paulo para examinar o seu olho direito, que tinha a pupila dilatada. A doença ainda não tinha afetado a sua retina e não precisava de um tratamento mais específico. Notamos também que sangue começou a sair do seu intestino, ele se limpava com um pano e nós começamos a ficar 24 horas com ele, para ajudá-lo ao máximo possível. Todo seu sangue se perdia sem podermos fazer nada. Um de seus testículos já tinha estourado e conseguimos deter a infecção.
No domingo passado, em meio a turbulência do país, em que ficamos até isolados por falta de combustível, Guga apertou a minha mão, quando dormia junto a ele, e abandonou este mundo, que nem nós mais entendemos.
GUGA era o fundador do Santuário de Grandes Primatas. Todos sabiam que ele lutava contra a morte. O movimento pouco usual para um domingo alertou seus companheiros que a luta do líder tinha chegado ao fim. Um silêncio se abateu sobre seus irmãos, que ele ajudou a salvar de uma morte certa em mãos da desídia humana.
DESCANSE em PAZ, Grande GUGA. Nunca TE Esqueceremos!
Dr. Pedro A. Ynterian
Secretário, Projeto GAP Internacional