GIL, UMA BRASILEIRA
postado em 19 jun 2006

A superioridade humana, que se julga dona do mundo, tem criado as regras das espécies, e sua nacionalidade. Os chimpanzés são considerados seres exóticos, já que são originários da África. Porém, os ancestrais do homem são os mesmos dos chimpanzés, e sua origem é africana. Os homens no Brasil, também poderiam ser considerados exóticos, já que chegamos aqui procedentes de outras latitudes.

Chimpanzés no Brasil, aqui nascidos, são aproximadamente 40% da população atual deles. A maioria é jovem, menos de 20 anos de idade. Gil é uma brasileira, nunca poderá ser considerada um ser exótico. A sua mãe, Margarethe, é africana e ainda está viva, apesar dos sofrimentos em suas passagens por circo e zoológicos. Ela não tem dentes, os quais foram arrancados cedo em um circo, nunca conseguiu criar sua prole: Gil, sua filha possivelmente mais velha, de aproximadamente 13 anos de idade, Noel de 7 anos, Emílio de 5 anos e alguns outros desconhecidos, por nós e por ela.

Gil veio ao Santuário, a pouco mais de dois anos, de um circo mineiro. Ela ficou naquele circo desde poucos meses do nascimento, foi humanizada, vestia roupas de menina, dormia em uma cama com humanos, brincava com bonecas e cachorros. Ela cresceu, ficou forte, de gênio intenso, com critérios definidos. Não gostava de crianças, talvez, foi humilhada sem saber que era um ser sensível, amoroso, inteligente, e foi destratada.

GIL E JANGO

Gil se relacionou bem com Jango, que chegou semanas depois de outro circo mineiro, este ainda mais humilhado, sem dentes e castrado, talvez o máximo que se pode fazer com um ser, para dominá-lo. Jango adorava Gil e esta que nunca tinha vivido com outro chimpanzé, acolheu Jango como sua amiga, e quase sua mãe. Uma vez tentamos aproximar Gil com Junior, recém-chegado de Brasília. Gil achou Junior diferente, já que tinha testículos, o que Jango não possuía. Junior começou a gostar de Gil, porém Jango chorou, gritou até o desespero, e tivemos que retornar Gil com ele, pois Jango, apesar de ser castrado, soube experimentar o ciúme de um possível amor traído.

COMO ERA GIL?

Gil tinha características próprias, andava em dois pés uma boa parte do tempo, com o corpo totalmente erguido, especialmente quando estava nervosa, o que era habitual. O gênio dela era muito forte, passava da violência ao carinho em minutos. Um tratador novo, um pedreiro que passava pela estrada, um caminhão com materiais para entrega, tudo isso a irritava. Nunca um chimpanzé muito mais forte que ela conseguiu o que ela fez, praticamente arrancou a grade de seu refeitório, em um momento de fúria. O Dr. Rômulo Mello, Diretor Nacional de Fauna do IBAMA, em uma visita ao Santuário dias atrás, apreciou a força e a violência do caráter de Gil. Em sua frente, ela destruiu uma bandeja de plástico com alimentos e jogou aos seus pés. Ela queria demonstrar para todos os que não a conheciam que era perigosa e que não tentassem tirá-la de lá.

Uma outra característica era sua claustrofobia, produto de ter morado anos em gaiola, o que é freqüente em muitos de seus irmãos que moram no Santuário. Gil dormia na plataforma a céu aberto, não importando o frio que estivesse na madrugada, se cobria com um cobertor e os lenços que levava de um lado para outro, e deixava que as estrelas a protegessem de qualquer mau desígnio.

Quando Gil chegou notamos um furo próximo de sua axila, e ela colocava o dedo lá com freqüência, e sangrava. Depois notamos um furo similar em um lado do peito, então descobrimos que ela se automutilava. Devagar fomos mudando o seu comportamento, e só às vezes nos instantes de mais tensão, ela se machucava nos braços levemente.

UM DIA ATÍPICO

No domingo do dia 18 de junho, foi um dia atípico no Santuário, o Brasil jogava contra a Austrália à uma hora de tarde. Nos adiantamos nossos serviços para poder assistir a partida. Na noite anterior as festividades juninas geraram mais fogos que o de costume, o que os chimpanzés nunca entendem, e sempre ficam atemorizados e tensos. Eu estava com Luke na cerca elétrica dele, que dava acesso ao recinto de Gil e Jango. Quando era ainda bem cedo, em minha primeira visita aos recintos para levar algumas frutas e iogurtes, Gil não tinha aparecido para cumprimentar-me. Muitas vezes ela me dá um beijo no rosto acompanhado de um sorriso. Luke estava apreensivo, ele ouve sons que meus ouvidos e o de nenhum humano conseguem escutar. Uma hora antes Caco e Jully também estavam diferentes. Escutaram coisas que eu não escutei. Era meio dia e meio, estava terminando de almoçar e fui interrompido por tratadores solicitando que eu fosse ao recinto de Gil e Jango, ela estava na plataforma desmaiada, com sangue saindo pela boca. Voei para lá, e Gil estava na plataforma sem vida, Jango que minutos antes ficou com ela passando a mão por seu corpo, tentando reanimá-la, agora caminhava de um lado a outro do recinto, implorando por nossa ajuda. Passamos Pongo para a cerca elétrica, e Jango com esforço passou para o recinto de Pongo, então conseguimos entrar no recinto de Gil. Subi na plataforma, e confirmei que ela já levava 2 ou 3 horas sem vida.

O DESESPERO DE JANGO

Gil era pesada, devido a sua ansiedade, comia muito. Sua bandeja de frutas e verduras após o meio dia já estava vazia. Em dois anos conosco ela dobrou de peso e tamanho. Descemos o seu corpo com a ajuda dos tratadores. A Dra. Camila, chamada às pressas, chegou nesse momento. Tinha muito sangue que saiu por sua boca, antes de morrer, e manchava os lenços com que ela sempre se deitava. Alguns urubus já começaram a sentir o cheiro e pairavam a cem metros de altura. Luke viu tirá-la do recinto e no início não entendeu e ficou furioso, batendo na cerca elétrica. Jango gritava e chorava quando começamos a descê-la pela plataforma. Ele ainda pensava que nós humanos, ?todo-poderosos? deste Universo, podíamos salvar a sua companheira amada. Leo, desde outra plataforma, gritou como ele faz quando algo o atemoriza. Ele sabía que a morte tinha arrancado a vida de uma irmã sua. Guga e os pequenos à distância ficaram em pé tentando entender o que acontecia, que sem dúvida, não era nada bom para eles.

A autópsia nos sinalizou o que temíamos, Gil vivia com um forte estresse emocional, qualquer coisa a perturbava e desatava torrentes de adrenalina em seu sistema sanguíneo, que transtornava seu caráter, e a convertia em um ser temível e explosivo. Uma gastrite estava indicando o seu estado de ânimo instável, e o coração cheio de sangue, indicava um infarto fulminante do miocárdio, que a abateu em poucos minutos.

GIL E SEUS IRMÃOS MORTOS

GIL, UMA BRASILEIRA, poderia ter sido um ser feliz, apesar do cativeiro, já que estava bem acompanhada por seus irmãos, e pelos poucos humanos que a tratavam. Porém, ela nunca entendeu por quê foi arrancada de sua mãe, convertida em uma criança humana, por poucos anos, usada para fotos, para fazer piruetas em um picadeiro, com roupas absurdas, e depois, quando começou a entender a civilização humana, foi jogada em uma gaiola por anos, já que era perigosa demais para ser usada e explorada.

Gil será sepultada na sexta-feira, dia 23 de junho, no Cemitério do Santuário, junto com seus poucos irmãos também fulminados ainda jovens por uma morte não anunciada:
. FLINT, macho nascido na Holanda, possivelmente submetido a experiências pseudomédicas quando era bebê, que morreu dias após chegar 6 anos atrás, com seus pulmões destruídos por infecções.
. CHUCA, fêmea, veio do México, morta em São Bernardo do Campo, por um policial despreparado quando ela fugiu da casa de um funcionário de um circo e que o IBAMA nos entregou o seu corpo.
. SUZI, fêmea, veio da África, tinha aproximadamente 22 anos de idade, diabética Tipo I
(dependente de insulina), que morreu meses depois de chegar ao Santuário, procedente de outro circo, que nos ocultou sua doença.

A MENSAGEM DE TUCA

No dia seguinte, como é habitual, às 7:00 h da manhã, eu estava distribuindo frutas e iogurtes no complexo de recintos onde Gil morava, quando Tuca apareceu no refeitório, algo que nunca acontece tão cedo, e começou a olhar pelo corredor apontando para o recinto de Gil. Tuca tinha presenciado a morte, a descida do corpo e o seu traslado para nossa clínica. Ela depois subiu na grade e pela janela de vidro olhou para a clínica à distância, pegou minha mão, deu um beijo em meu rosto e foi embora. Tuca tem 40 anos de idade e é a mais sofrida talvez dos chimpanzés no Santuário, que viveu de circo em circo, e comeu até papel jornal, porque não lhe davam comida, me agradeceu em nome de todos que Gil, a Brasileira, tinha descansado em paz e nós tínhamos feito o possível por ela.

GIL, UMA BRASÍLEIRA, será o primeiro chimpanzé não exótico, que será sepultado em sua própria Pátria, e que será um SÍMBOLO, se é necessário ter mais um, de como o Brasil trata seus irmãos primatas, que sem direitos sobrevivem ainda sob o seu céu.

A única coisa que podemos fazer neste instante é chorar por ela, GIL, UMA BRASILEIRA.

Dr. Pedro A.Ynterian

Sorocaba, 19 de junho de 2006.