Por Steven M. Wise (para a Foreign Affairs)
Todos os anos, os seres humanos infligem sofrimento tremendo em cima de outros animais. Os caçam aos milhões, os mantém em fazendas aos bilhões, e os pesca aos trilhões. Em circos, zoológicos, rodeios, fábricas de filhotes, fazendas, parques marinhos e laboratórios, os seres humanos rotineiramente abusam e abatem animais. Eles fazem isso porque eles podem –em termos legais, os animais não humanos são apenas “coisas”.
No trabalho The Humane Economy, Wayne Pacelle, presidente da Humane Society of the United States, a maior organização de proteção animal no país, propõe o aproveitamento do capitalismo para fins morais. Ele quer pressionar as empresas a tratar os animais de forma mais humana e fornecer informações aos consumidores que eles podem usar para comprar produtos que minimizam a exploração animal; em outras palavras, ele quer criar uma “nova economia humanitária. . . com os consumidores pressionando, com cuidado, e, por vezes, urgentemente, as empresas a fazer mais para os animais. ”
Pacelle apresenta evidências impressionantes de campanhas bem sucedidas que têm ajudado a reduzir o sofrimento de muitos animais não-humanos. Em meados da década de 1990, as lojas Petco e PetSmart deixaram de se abastecer de animais de estimação de fábricas de filhotes e pararam de vender cães e gatos completamente; em vez disso, eles agora ajudam as organizações de resgate de animais a acharem novos lares para os animais. Dez anos atrás, a Smithfield Foods eliminou o uso de celas de gestação de suínos, caixas de metal com pisos de concreto em que as porcas reprodutoras podiam passar quase suas vidas adultas inteiras. Graças à pressão da Starbucks, McDonald, Walmart e outras empresas, produtores de ovos começaram a prometer tirar de seu uso as minúsculas gaiolas de bateria em que galinhas poedeiras mal conseguem se mover. Cientistas estão desenvolvendo “carnes” e “ovos” à base de plantas. Em filmes, animais não-humanos gerados por computador estão substituindo os reais. O Ringling Brothers, um dos circos mais famosos nos Estados Unidos, não usa mais elefantes. Cientistas desenvolveram alternativas aos animais para testes de cosméticos e médicos. Os turistas agora viajam para ver baleias, leões e gorilas, e não matá-los.
Estas vitórias são reais, e mais se seguirão. Mas a economia humanitária é uma solução temporária; A estratégia de informação dos consumidores pressionando as empresas a reduzir o sofrimento dos animais de Pacelle não é suficiente a longo prazo. Um avanço legal também é necessário.
A Lei sempre classificou entidades como “coisas” ou “pessoas”. Mas “pessoa” nunca foi sinônimo de “humano”. Legalmente, dezenas de milhões de escravos humanos eram considerados “coisas”, enquanto corporações, navios, um ídolo Hindu, uma mesquita, os livros sagrados da religião Sikh, e o Rio Whanganui, da Nova Zelândia, já foram rotulados como “pessoas”. A distinção é fundamental: “pessoas” têm a capacidade de direitos legais; “coisas”, não. A pessoalidade (personhood, no termo mais apropriado em inglês) protege os interesses mais fundamentais de um ser humano. É por isso que o artigo 6 da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “todos têm direito ao reconhecimento em toda parte como uma pessoa perante a lei.” Animais não-humanos continuarão a sofrer até que a lei os reconheça como “pessoas”.
Pessoas perante a lei
Em 22 de junho de 1772, um jovem escravo chamado James Somerset entrou na Corte de Direito Comum de Londres. Quando saiu, várias horas mais tarde, depois que o juiz, Lord Mansfield, havia declarado a escravidão humana uma prática tão odiosa que a lei comum não iria tolerá-la, ele parecia o mesmo de quando de quando tinha entrado. Mas uma vez que a Lei o considerou, passou a ser uma entidade totalmente diferente. Legalmente, ele tinha entrado no tribunal como uma coisa, mas o deixou como uma pessoa.
Quase dois séculos e meio depois do veredicto de Mansfield, a luta para o reconhecimento formal da pessoa humana universal terminou; em nenhum lugar há escravos humanos legais. Mas a batalha para transformar animais não-humanos de “coisas” em “pessoas” só recentemente começou. Em dezembro de 2013, o Projeto de Direitos não-humanos, um grupo de direitos civis da qual sou presidente, trouxe três casos nos tribunais de primeira instância do estado de Nova Iorque. Em cada caso, o Projeto de Direitos não-humanos exigiu que o tribunal emitisse um mandado de direito comum de Habeas Corpus, mandado normalmente usado para determinar se a detenção de um prisioneiro é lícita, em nome de um chimpanzé. Cem páginas de depoimentos de especialistas em cognição de chimpanzés demonstraram que eles são seres autônomos. O Projeto de Direitos não-humanos argumentou que a autonomia de um chimpanzé era suficiente para permitir-lhe ter o direito fundamental à liberdade corporal que o Habeas Corpus garantia. O grupo também argumentou que negar a um ser autônomo liberdade não era um objetivo legítimo do Estado e que, por a tal negação depender de uma única característica – que espécie animal era – violava também noções fundamentais de igualdade. Desde então, o Projeto de Direitos não-humanos começou a expandir a sua atuação para abraçar outras espécies de grandes primatas, elefantes e cetáceos e está trabalhando com grupos legais e políticos na Austrália, Europa e América do Sul.
A luta legal para reconhecer os direitos fundamentais dos seres humanos foi árdua. Assim também será a luta para reconhecer os direitos fundamentais dos animais não-humanos, uma vez que tantos seres humanos se beneficiam ao explorá-los. Enquanto isso, bilhões de animais sofrem terrivelmente. O trabalho da Humane Society e outras organizações será crucial a curto prazo para melhorar o seu sofrimento.
Mas, a longo prazo, a proteção dos interesses fundamentais dos animais não-humanos não pode ser garantida sem direitos legais, da mesma forma que não podem os interesses fundamentais dos seres humanos.
Os seres sencientes não podem contar com os mercados por si só para proteger seus interesses. Pacelle observa que “confrontar injustiças – de escravidão e trabalho infantil à segregação de gênero e discriminação” foi uma parte dolorosa e necessária da tradição norte-americana. Mas o mercado humanitário não corrigiu nenhuma dessas injustiças. A reforma só veio quando as vítimas conquistaram a “personhood” e os direitos legais fundamentais.
Pacelle parece acreditar que, para a maioria dos consumidores, o bem-estar dos animais que comem ou usam pesará em um aumento do custo de tratá-los de forma mais humana. No entanto, o número de animais maltratados e explorados subiu. Só nos Estados Unidos, quase dez bilhões de animais são mortos cada ano exclusivamente para alimentação, comparado com menos de dois bilhões em 1960. Mesmo que se acredite que esta tendência se estabilizou e que o progresso está em curso, a contenção é possível, a partir das mudanças de atitude. Os direitos legais são cruciais precisamente porque eles protegem os interesses fundamentais do titular dos direitos de exploração, tal como os desejos de mudança de maioria.
Além do mais, os animais não podem contar com a mão invisível para produzir um resultado humanitário. Os interesses econômicos sempre levaram à exploração dos outros, visto a escravidão. E não está claro qual é o plano B de Pacelle se a economia humanitária falhar, como já tem acontecido.
Considere a atual crise da vida selvagem na África e na Ásia. Apesar dos melhores esforços de grupos como a Fundação Internacional contra o Mercado Ilegal, grupos do crime organizado estão levando elefantes e rinocerontes ao perigo de extinção, ao caçá-los para extrair marfim de suas presas e o pó supostamente medicinal que pode ser extraído de seus chifres. A procura humana por carne, terras e óleo de palma está levando todas as espécies de grandes símios afiicanos e asiáticos ao desaparecimento. Pacelle acredita que este problema pode ser resolvido com o ato de “não comprar produtos de marfim e viajar apenas para países africanos onde a vida selvagem é protegida.” No entanto, essa solução vai demorar muito tempo.
Pacelle acha que a economia humanitária é a solução para os problemas todos os animais não-humanos enfrentam; para os chimpanzés e os mosquitos, elefantes e baratas, orcas e formigas, a economia humanitária vai trazer progresso. Mas existem alguns animais, como macacos, elefantes, cetáceos e outros, que são tão cognitivamente complexos e autônomos, e cuja exploração é tão inegavelmente frívola, que, deixando os seus interesses fundamentais aos caprichos da economia humanitária por mais um dia que seja já é grotesco. Nestes casos, a Humane Society deve pressionar para o estabelecimento da pessoalidade e direitos legais agora.