Comentários à sentença que condenou o Circo Le Cirque e seus responsáveis legais por maus tratos a animais
postado em 05 jan 2010

Sem dúvida, esta sentença ficará para a história. Apesar de não ser definitiva, na medida em que ainda é passível de recurso, representa uma grande vitória aos animais. Finalmente o Judiciário Brasileiro teve a chance de reconhecer o real significado de “maus tratos”.

Sempre insistimos que cometer ato de abuso ou mal tratar um animal era muito mais do que bater e lhe privar de água, comida e higiene; era também não lhe proporcionar espaço adequado, não garantir sua segurança e da população. E pudemos verificar que esses pontos também foram levados em conta durante o processo.

A questão do espaço e segurança é muito importante, pois leva à conclusão lógica de que a atividade circense é, por si só, incompatível com a adequada manutenção de animais ditos “selvagens”, como chimpanzés, elefantes, girafas, rinocerontes, hipopótamos, ursos e grandes felinos. Todos esses animais, além de necessitarem de grandes áreas, também requerem um nível muito grande de segurança nos recintos que ocupam e plano de emergência em caso de fuga, itens que não são possíveis de serem atendidos devido a itinerância da atividade.

No que se refere aos animais domésticos, muitas vezes tidos como possíveis de serem utilizados nos espetáculos, pudemos perceber que mesmo num circo de grande porte, como o Le Cirque, que presumivelmente teria condições financeiras de proporcionar condições adequadas de transporte, controle sanitário, alimentação etc, isso não era feito. Animais domésticos também tinham alimentação e espaço inadequados e nenhum controle sanitário, ao contrário do que bradam, tão insistentemente, as vozes dos que defendem a regulamentação do uso de animais em circos.

Temos ouvido nas audiências e debates na Câmara dos Deputados, que tem se realizado para discussão do projeto de lei que proíbe o uso de animais em circos, a classe circense insistir que a regulamentação seria o ideal, já que grandes circos cumpririam a lei e tratariam bem os animais. Mas não é essa a realidade.

Aqui, não um circo pequeno do interior do nordeste mantinha leões famintos em jaulas precárias, mas um dos maiores e mais ricos circos em atividade atualmente no país, teve demonstrado, em processo público e com a ampla defesa garantida, os bárbaros crimes praticados contra os animais e o descaso com a Lei e a Justiça.

Em documento muito bem fundamentado, o Juiz Esdras Neves condenou não só a empresa circense, mas também o dono do Le Cirque nas penas por maus tratos e mutilação de animais (artigo 32 da Lei 9605/98), obstar a ação da fiscalização (artigo 69 da Lei 9605/98) e desobediência (artigo 330 do Código Penal). Além dessas penas corporais, que serão substituídas por penas restritivas de direitos ainda não definidas, houve a perda da guarda dos animais e condenação a penas pecuniárias que juntas ultrapassam os 300 mil reais.

Um funcionário do circo também restou condenado, por obstar a ação da fiscalização, já que no dia da apreensão se acorrentou a uma carreta, impedindo a apreensão de alguns animais.

Apenas para ilustrar, trazemos alguns trechos da sentença que mostram que, ao contrário do que falavam os representantes do circo, seus animais sofriam sim e que toda nossa luta para que isso acabasse valeu a pena. Valeu a pena suportar cada dia sob pressão, cada telefonema ameaçador, cada mentira divulgada em blogs e e-mails:

“(…)Assim, a conduta dos réus, conforme sobejamente demonstrado na prova dos autos, subsume-se integralmente ao tipo penal em comento, inscrito na lei especial.
O conceito de maus-tratos não tem conotação subjetiva. Os maus-tratos praticados pelos réus foram devidamente constatados por meio das lesões fartamente comprovadas nos autos, pelo comportamento dos animais descritos na denúncia, e, ainda, pelo insuficiente e inadequado fornecimento de alimentação a estes, dentre outros fatos já aduzidos.

Os réus, em conduta sumamente reprovável, não asseguravam aos animais apreendidos condições de sobrevivência digna, racionando até mesmo o acesso à água. Conforme informando pela Caesb, no período de vinte e quatro dias a ré consumiu trinta e nove mil litros de água, quando deveria ter consumido, somente para os animais de grande porte, mais de cinquenta e sete mil litros; vale lembrar que a água também era destinada ao consumo dos funcionários do circo e à limpeza, ainda que precária, das instalações. Ressalte-se que, ao contrário do que alegam os réus, não há nenhum elemento de prova nos autos no sentido de que os réus teriam adquirido água em qualquer tempo, exceto aquela oriunda da Caesb.

Quanto aos chimpanzés, que tiveram os dentes cirurgicamente extraídos, as informações prestadas pela Coordenação Geral de Fiscalização Ambiental, referente aos processos administrativos nº 02008.001069/2006-18 e nº 02001.005010/2008-12, à fl. 2307, relatam que os espécimes foram adquiridos com dentes, conforme declaração do proprietário anterior, configurando, pois, a prática criminosa da mutilação.(…)”

“ (…)A Defesa sustenta que o GAP teria sido o responsável pelo óbito do pônei, porquanto financiou o retorno dos animais a Brasília e estes teriam sido transportados de forma inadequada.
Tal alegação não encontra amparo nos autos; bem ao contrário, é possível concluir que os animais levados em fuga para o Estado do Mato Grosso do Sul lá ficaram retidos por tempo sobejamente maior do que o necessário, tendo sido transportados sem a emissão da GTA e sem que fossem ministradas as vacinas necessárias. A conduta dos réus provocou o atraso no retorno dos animais, que ficaram confinados em carretas superlotadas, ocasionando, agora sim, o óbito do pônei.
Os maus-tratos infligidos aos animais apreendidos alcançaram o paroxismo; o resultado sumamente indesejado ocorreu, como se viu, qual seja, o óbito de alguns dos animais apreendidos, o que é objeto de apuração em ação penal própria.

Não há a mais tênue comprovação pela Defesa da alegação de que a Fundação Jardim Zoológico de Brasília teria impedido o acesso dos proprietários aos animais apreendidos; pelo contrário, relata a Fundação que os animais apreendidos não foram procurados por seus tratadores ou proprietários para visitação, apesar de ter sido franqueado o acesso às instalações no horário permitido para tanto. Ao contrário do que alega a Defesa, há, sim, farta prova nos autos no sentido de que os réus fizeram ouvidos de mercador aos apelos que receberam para auxiliar a resolver intercorrências surgidas, mormente em situações em que a voz de comando do tratador poderia restituir o bem-estar aos animais a quem havia sido imposto a desventura da viagem, em condições degradantes, ao Estado do Mato Grosso do Sul (Cf. depoimento de Roberto Cabral Borges, Biólogo), fls. 2232, 2233, entre outras).

Insiste a Defesa em sustentar que, após a apreensão judicial, os animais teriam sofrido maus-tratos. Bem ao contrário, os autos revelam que a maior parte dos animais descritos na denúncia foi retirada, ainda a tempo, do regime impiedoso e vil de exploração a que estavam submetidos; não lhes estavam sendo oferecidos os cuidados necessários, sofriam maus-tratos e foram os animais lançados à sua própria sorte; alguns animais não suportaram o sofrimento que lhes foi imposto pelos réus, como já se acentuou, e perderam a vida.(…)”

“ (…)Afigura-se claro que o réu George, ao tomar conhecimento da existência do mandado de busca e apreensão dos animais do Circo, com o intuito de frustrar o seu cumprimento, evadiu-se do Distrito Federal, descaracterizando as carretas que fizeram o transporte dos animais, como pode ser comprovado pela análise das fotos constantes de fls. 36, 41, 44, 274 a 276.
O réu George, em seus depoimentos de fls. 256 e 2237/2240, afirma que tinha conhecimento do mandado de busca e apreensão dos animais, tendo realizado o transportado dos aludidos animais para outro Estado, com o fito de evitar o cumprimento da ordem judicial. Afirma o réu:

"(…) Porque o alvará de funcionamento do circo foi cassado para atuação em Brasília, o depoente decidiu levar os animais para Mato Grosso. (…) O depoente confirma que descaracterizou os carros na viagem para Campo Grande (…)"

Insta destacar que, ao ser abordado pela Polícia Rodoviária Federal, já no Estado do Mato Grosso do Sul, declarou aos policiais que os animais pertenciam ao Circo Portugal, o que evidencia a má-fé do réu George.
A desobediência ao cumprimento do mandado de busca e apreensão configura o crime descrito no artigo 330, do Código Penal.(…)” (grifos nossos)

O inteiro teor da sentença pode ser obtida através do site:

www.tjdft.jus.br

Clicar em consultas processuais, 1ª instância, colocar o seguinte número de processo em “argumento de pesquisa”: 2008.01.1.111989-0. Em “andamentos”, ir até a data 18/12/2009 e clicar em “sentença”.

Dra. Selma Mandruca
Projeto GAP – Brasil

Notícia relacionada: https://www.projetogap.org.br/pt-BR/noticias/Show/2685,le-cirque-perde-todos-os-animais-e-e-condenado-por-maus-tratos