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O habilidoso chimpanzé vive no santuário mantido pelo GAP (Great Ape Project) – Projeto dos Grandes Primatas – em Sorocaba (SP), que abriga também leões e ursos vítimas de maus-tratos em zoológicos e circos do país.
“O Guga está aqui desde o começo do santuário. Ele foi acostumado a manusear revistas e jornais desde que era bebê, por isso fica tão empolgado quando ganha esse mimo. Ele passa um tempão folheando, parece gente”, diz a tratadora Meire Miranda, de 40 anos, responsável por cuidar dos primatas, principalmente dos filhotes.
Guga não é o único que gosta de revistas. A maioria dos chimpanzés reage com empolgação quando ganha um exemplar. Alguns começam a “leitura” no chão mesmo, logo que pegam as revistas. Outros preferem achar um local calmo, de preferência no topo da “casa” onde vivem, encostados na parede. “As revistas têm que ter bastante desenho, figura, propaganda. Eles não gostam de muito texto. Por isso, as de fofocas e de celebridades são as preferidas”, revela.
Até os filhotes mostram interesse pelo passatempo, mesmo que ainda não tenham a habilidade para folhear as páginas. A dificuldade, depois de entregar as revistas, é conseguir recuperá-las intactas, já que muitas páginas acabam sendo arrancadas por aqueles cuja habilidade não acompanha a empolgação.
Não é só no gosto pela “leitura” que os chimpanzés se assemelham ao ser humano. Eles apresentam variações de humor e comportamento dignas de uma pessoa, o que requer atenção por parte dos cuidadores que trabalham no santuário. “Tem dias que eles acordam de mau humor, irritados, nao querem conversa. A gente tem que saber respeitar o mau humor deles. Eles também guardam rancor, mostram desprezo. Uma vez prometi pro Lucke que passaria no recinto dele para dar alguma coisa, mas por algum motivo fui embora. Ele ficou sem olhar na minha cara durante dois dias. Senti o desprezo como se fosse o de uma pessoa”, lembra.
‘Aposentadoria’
O projeto do santuário foi criado em 2000, pelo microbiologista e empresário Pedro Ynterian. O primeiro morador foi justamente Guga, que, aos três meses, tinha sido “adotado” e criado pelo empresário.
Em 2006 o “braço” do GAP no Brasil passou a ser representado oficialmente pela ONG Projeto GAP – Grupo de Apoio aos Primatas. O idealizador do projeto no Brasil é hoje o presidente internacional da organização, que tem sedes em vários países.
O objetivo do projeto é dar um lar definitivo aos animais que viviam em condições inadequadas, muitas vezes sob maus-tratos. Além de oferecer a “aposentadoria”, o santuário também promove a ressocialização.
Mas, no caso dos primatas, muitas vezes os anos trabalho forçado em circos e zoológicos impedem que eles vivam na companhia de outros da mesma espécie.
“Alguns sofreram tanto e passaram tantos anos isolados que não conseguem se adaptar e voltar a viver em comunidade. Nestes casos, eles são trazidos e são colocados em um espaço exclusivo. Já tivemos caso de chimpanzé que se automutilava por causa dos traumas que sofreu. Mas também temos o exemplo do Jimmy, que quando chegou aqui ‘adotou’ os filhotes abandonados pela mãe por não saber amamentar e hoje possui uma família”, explica Meire.
Um dos hóspedes mais ilustres é a fêmea Catarina, que trabalhou por pelo menos três décadas em circos pelo país afora e foi figura carimbada em programas de auditório na TV nos anos 90. Catarina passou os últimos anos antes de ser levada para Sorocaba, em 2009, fazendo apresentações em escolas vestida como criança. Hoje, aos 47 anos, ela aproveita a “aposentadoria” ao lado do companheiro Jango. “Ela foi criada como gente durante tantos anos que perdeu os instintos naturais”, lamenta, após ter o rosto acariciado pelas mãos curiosas da chimpanzé.
Filhos e filhas
A preocupação com os animais faz parte de um trabalho que domina a vida de Meire há 14 anos, quando ela trocou a carreira de eletrotécnica para viver com os primatas. “Fui acompanhar uma colega em uma entrevista de emprego no sítio onde o Dr. Pedro morava com a mulher e o Guga, que na época tinha 5 meses. Ela não aceitou o trabalho, mas eu me apaixonei pelo macaquinho e pelo projeto do refúgio, aí decidi largar tudo para viver aqui”, conta.
O viver, neste caso, é literal, já que Meire mora dentro do santuário. Ela só deixa o lugar quando vai para a faculdade, onde faz o curso de fotografia – hobby que surgiu da mania de tirar dezenas de fotos diárias dos primatas, que hoje estampam o calendário anual da entidade.
Ela visita diariamente todos os chimpanzés, com quem conversa, chamando-os carionhosamente de filhos e filhas. Mas ela também sabe o nome, a história de vida dele e até a preferência de cada um na hora da comida. “Assim como nós humanos, casa um prefere um tipo de comida. Uns gostam de iogurte natural, outros de morango. Uns comem um tipo de verdura e outros não.”
Para dar conta de alimentar tantas bocas, a cozinha do local recebe caixas e mais caixas de frutas, legumes e verduras semanalmente. As geladeiras estão repletas de caixas de leite, sucos, achocolatados e iogurtes. Uma cozinheira prepara a comida, que é dada aos chimpanzés só depois de Meire experimentar.
“Aqui os animais têm acesso a uma alimentação balanceada e uma vida livre dos maus-tratos que sofriam em circos e zoológicos e dos perigos que enfrentariam no habitat deles, como predadores e caçadores”, diz.
‘Mãe adotiva’
De todos os chimpanzés que vivem no santuário, um recebe atenção especial de Meire: o pequeno César, de 10 meses. Quando nasceu, a mãe Samantha enrolou César em um cobertor e o deixou abandonado no chão. “Como a mãe dela foi criada por humanos ela não desfrutou dos cuidados de uma mãe biológica. Por isso ela abandonou a cria e eu virei mãe adotiva”, conta.
César passa o dia em um recinto exclusivo no santuário, com direito a escorregador, balanço e brinquedos de plásticos. À noite vai para a casa de Meire, que mora com oito gatos e quatro cães. “Ele dorme no quarto, em um espaço cercado. Aos poucos estamos apresentando ele para a mãe, até que ela assuma a cria”, explica ela, com a propriedade de quem já foi ‘babá de outros nove filhotes.
O pequeno chimpanzé se comporta como uma criança quando vê a mãe adotiva. Corre para o colo dela e cai na risada quando recebe cócegas.
Meire espera que esse contato permaneça mesmo depois que César atingir a idade adulta, o que não aconteceu com Guga, que ela também conheceu ainda bebê. “Passei um tempo grande sem vê-lo porque tive que cuidar da minha mãe, que estava doente. Quando voltei ele não me reconhecia, perdi a confiança de ficar junto com ele. Só com o tempo é que ele foi lembrando das nossas brincadeiras. O tamanho e a força dele também são um agravante, ele é muito forte, pode nos machucar mesmo sem intenção”, diz.
O último abraço que ganhou de Guga, lembra ela, foi quando ele fugiu do recinto. “Quando ele me viu, correu pra cima de mim e me abraçou. Fiquei assustada, mas foi bom sentir aquele abraço de novo. Em seguida ele me pegou pela mão e me levou para dentro da casa, como eu fazia com ele quando ele era bebê”, recorda.
(Foto: Divulgação/Meire Miranda)
O único que entra no recinto dos primatas adultos é o presidente do GAP. “O dr. Pedro fica no santuário de sexta a segunda-feira. Durante os dias em que está aqui ele leva cesta com frutas especiais para os chimpanzés e chega até a dormir no recinto com eles”, diz.
Sem visitas
O santuário fica instalado na altura do quilômetro 90 da Rodovia Castello Branco, em uma área de quase 560 mil metros quadrados cercada de verde. Além dos 55 chimpanzés, 60 macacos-prego, 12 macacos-aranha, quatro gibões, bugios, macaco-caranguejeira e saguis, o local também abriga 13 leões e três ursos.
Mas quem se interessou em conhecer os simpáticos primatas, uma má notícia: o local não é aberto à visitação do público. O direito dos animais à privacidade é uma das bandeiras defendidas pelo projeto GAP.
Vários animais que hoje estão no santuário vieram justamente de zoológicos, onde recebiam a visita diária de centenas de pessoas. “A presença de gente estranha ao ambiente estressa os animais. Em um zoológico isso acontece o tempo todo, de forma sistemática. Os animais só têm descanso à noite. Eu sempre digo que é como ter um monte de gente na janela da sua casa olhando você enquanto come, brinca, vai ao banheiro. Os animais sentem vergonha, precisam de privacidade, assim como nós. Quando você está em um zoológico e um macaco grita ou joga algo na sua direção, não é para brincar. É sinal de stress”, afirma.
Na manhã em que a reportagem do G1 conheceu o santuário, as únicas pessoas no local além dos funcionários eram os pedreiros que trabalhavam na construção de novos recintos para abrigar futuros moradores.
O projeto GAP tenta, agora, trazer o 56º chimpanzé para o santuário: o macaco Blackie, de 50 anos, que há 40 vive no zoo de Sorocaba. A presença de mais um hóspede significa mais trabalho para Meire? “Amo tanto o que faço que não posso nem chamar de trabalho. Eles são minha família. Já falei para o dr. Pedro para construir um pequeno cemitério aqui. Assim, quando eu morrer, posso continuar aqui para sempre”, brinca.