O seu corpo estendido no chão, olhando para o teto, sua boca semi aberta, seus lábios e mucosas de cor azulada. A falta de oxigênio nos minutos finais que detonaram sua vida era evidente. Ainda era cedo, na manhã quando fui colocar sua primeira refeição ele não estava por lá. Vi as fatias de pão sem mexer, do dia anterior, o que nunca tinha acontecido antes. Charles não deveria sentir-se bem, pensei.
Porém, não o procurei. Minha voz desatava nele uma fúria intensa e o transportava a algum passado já remoto de alguém, como eu, que deve tê-lo machucado profundamente. No primeiro dia de Charles no Santuário, eu encostei na grade e apoiei meu tênis, que geralmente todos gostam de apreciar, mas esta vez a reação dele foi imediata, tentou segurá-lo. O seu objetivo era arrancar o tênis e atingir o meu pé. Rapidamente me livrei de sua força imensa. Essa foi a sua recepção para mim.
Desde aquele momento, reações sucessivas de violência e repúdio se multiplicaram quando me enxergava ou escutava a minha voz. Um dia culminou num ataque mais letal. Durante algumas semanas ele não reagia, ficava quieto, deixava eu colocar as bandejas em sua presença, não demonstrava o ódio de antes. Pensei que a relação estava melhorando e confiei. Uma manhã enquanto colocava um suco, ele meteu a mão pelo buraco, agarrou a minha mão e puxou o braço para dentro. Logo percebi que sua intenção era me matar, senti no ar. Me joguei no chão e fiz pressão contra a parede, gritei para confundi-lo, porém ele estava segurando firme a manga do meu casaco com suas mãos, puxando para dentro. Se ele conseguisse o meu braço direito, seria arrancado e minha vida iria junto. Tinham tratadores por perto que vieram em minha ajuda, mas a sorte me ajudou, o casaco estava aberto e ele, ao puxar, levou o casaco e não o meu braço, que mesmo machucado, ficou íntegro. Ele pegou o casaco e, a mordidas, o converteu em pedaços.
Quando os tratadores o encontraram, cheguei também de imediato. Tudo fazia indicar que teve uma parada cardio respiratória. Algo comum nos chimpanzés de cativeiro e de vida livre. A luta pela sobrevivência e o estresse do assédio humano em suas vidas paralisam o coração, que deixa de fluir o sangue e morrem asfixiados.
Charles veio do Zoológico de Ribeirão Preto. Um dos poucos zoológicos no Brasil que, uma década atrás, percebeu que ele não resistiria mais ao assédio do público, com sua personalidade forte, e nos pediu para recebê-lo. Charles se dava bem com todos, menos comigo, nunca me aceitou. Não importa o que eu fizera ou a comida que lhe trouxera, minha voz e minha presença o irritavam ao máximo e ele o demonstrava com atos de violência.
Era um sábado de agosto quando seu coração desistiu de acompanhá-lo na vida miserável que os cativeiros proporcionam. Charles teria sido um chimpanzé de vida livre e dominante. que levaria o seu grupo pelas matas africanas, com segurança e independência. Ele foi convertido – por ações do homem que o mantiveram em prisão – em um ser frustrado e infeliz.
A única testemunha dos seus últimos minutos, Francis, o acompanhava anos a fio. O amava e o temia. Quando tinha seus acessos de fúria, ela desaparecia, quando estava calmo, reaparecia para lhe dar um pouco de carinho.
Francis, talvez, teve uma vida mais conturbada que Charles. Capturada quando bebê na África, foi levada para América do Norte e submetida a torturas médicas, até terminar num zoológico desconhecido, que teve a brilhante ideia, junto com sua companheira Quennie, de enviá-las para Bolívia, onde quase teriam terminado os seus dias, por falta de comida e de esperança, se nós não as tivéssemos resgatados da morte anunciada. Elas nunca criaram os filhos que tiveram; foram trucidados no plano de torturas médicas que o NIH – Instituto de Saúde Norte-Americano – montou nos anos 1980 para testar drogas e vacinas.
Retiramos Charles do seu dormitório. Quase não deu tempo para curtir a reforma que durante meses fizemos naqueles recintos, que também acolhem Caco, July, Simon (Sam) e Rakker. Azulejamos todos e pensamos que ele estava contente. Deixou os pedreiros trabalharem durante vários meses, sem demonstrar animosidade.
Na autópsia consta um fígado aumentado e se confirmou a causa da morte por parada cardio respiratória.
No dia seguinte, Francis aguardava a volta do seu companheiro, ela não tinha entendido que ele tinha partido para sempre, assim como Quennie, sua amiga de infortúnios, anos antes também os tinha abandonado. Ela, com seus olhos tristes, me indagava por Charles, eu tentava lhe explicar que ele nunca mais voltaria. Ela continuava procurando nos dormitórios, sem achá-lo…
O espírito de Charles ainda paira sobre aqueles recintos que ele usou durante anos. Os sons e suas expressões de alegria, quando ele recebia a comida quente que adorava, ainda temos em nossa memória. As poucas coisas agradáveis do cativeiro, ele as curtia, o resto era degradante para ele.
Agora, no lugar em que estiver, talvez, vagando livre das cadeias dos cativeiros irracionais, que o atormentaram em vida, que seja Feliz. É o descanso de um Inconformado com sua sorte.
Dr. Pedro A. Ynterian
Presidente, Projeto GAP Internacional