Ela vai nos ajudar a desvendar o que aconteceu durante um período de 280 mil anos
Fernando Reinach, O Estado de S.Paulo
02 Fevereiro 2019 | 03h00
Em 1970 foi descoberta no sul da Sibéria uma gruta repleta de ouro arqueológico. O ouro dos arqueólogos é o que nós, leigos, chamamos de ossos e artefatos produzidos por nossos ancestrais. Essa caverna é chamada de Denisova e está localizada aos pés das montanhas Altais, na Rússia. Fica logo ali, uns 600 quilômetros a noroeste do local onde China, Mongólia, Cazaquistão e Rússia se encontram no mapa.
Nessa caverna foram descobertos os ossos de uma nova espécie de hominídeo, parente próximo nosso e dos Neandertais, chamado de Denosoviano. A caverna também serviu de lar para populações de Neandertais e foi lá que recentemente foi achado um osso de um descendente direto de um Denosoviano e de um Neandertal. Fora isso existe por lá uma quantidade enorme de ossos de outros animais e restos de plantas. Nessa mesma caverna foram encontrados desde pontas de lanças feitas de pedras lascadas muito antigas, ossos esculpidos e uma agulha de osso muito sofisticada. Tudo isso indica que muita coisa aconteceu nessa caverna durante o tempo em que foi habitada por hominídeos.
Faz alguns anos sabemos que a caverna foi ocupada por um longo período de tempo, começando talvez 300 mil anos atras. Os objetos mais recentes datam de 20 mil anos atrás. São aproximadamente 280 mil anos de ocupação por hominídeos. É muito tempo. Imagine que, quando nosso primeiros ancestrais dormiram nessa caverna, nossa espécie, o Homo sapiens, ainda não havia surgido na África, e quando a caverna foi abandonada, 20 mil anos atras, não só havíamos surgido como já havíamos saído da África e nos espalhado pela Ásia e pela Europa e estávamos explorando o Pacífico. Também já havíamos exterminado os grandes mamíferos e os Neandertais que habitavam a Europa. Por volta de 20 mil anos atrás estavam surgindo as primeiras cidades e o homem estava no inicio do desenvolvimento da agricultura. Durante o período que os hominídeos viveram nessa caverna, o planeta passou por três períodos glaciares. É muito tempo.
Essa caverna é uma mina de ouro, pois vai nos ajudar a desvendar o que aconteceu durante um período de 280 mil anos. Compare isso com a história de Roma, na Itália. Lá você escava e encontra resquícios do passado por toda parte. Apesar de Roma ter sido habitada antes, o mito de Rômulo e Remo (os irmãos que teriam fundado Roma após terem sido amamentados por uma loba) relata que Roma teria sido fundada 750 anos antes do nascimento de Cristo. Ou seja, tudo que encontramos em Roma é produto da ocupação da área por seres humanos durante 2.800 anos. Isso equivale a 1% do tempo que os humanos habitaram a caverna de Denisova, longuíssimos 280 mil anos.
Para entender o que aconteceu durante esses 280 mil anos é preciso saber a idade de cada fragmento de osso, de cada objeto, de cada pólen, de cada pedaço de terra e ir reconstituindo, fragmento por fragmento, o desenrolar da história. Em cavernas como essa, a medida que o tempo passa, os ossos e objetos vão se acumulando no solo em camadas. Assim, as camadas mais recentes estão mais próximas da superfície e as mais antigas, mais no fundo.
O problema é saber a idade de cada camada em cada uma das três câmaras que formam a caverna. Sabendo isso é possível dizer, por exemplo, que um osso desenterrado em um lugar da caverna é do mesmo século (ou milênio) de uma pedra lascada encontrada em uma escavação em outro lugar da caverna.
A novidade da semana é que um time de cientistas especializados em datar camadas de sedimentos conseguiu produzir um mapa detalhado de cada camada de sedimento, relacionando as camadas a datas no passado. Para isso, escavaram três locais até uma profundidade de 6 metros e, usando uma combinação de métodos físicos químicos e biológicos, foram datando as camadas. A 1,2 metro da superfície, encontraram material de 30 mil anos; a 2 metros, material de 70 mil anos. O local onde foi encontrado o osso do filho de um Neandertal com um Denisoviano estava a 3 metros de profundidade, 140 mil anos. E assim por diante até 6 metros de profundidade, onde o material tinha 300 mil anos. Esse mapa foi correlacionado com o clima da região, assim já sabemos que camadas estão associadas aos períodos glaciais e às mudanças de clima nessa região da Rússia. Em suma, esse trabalho minucioso vai permitir que escavando todo o solo da caverna poderemos reconstituir com boa precisão o que ocorreu ao longo desses 280 mil anos de história. O resultado é um verdadeiro mapa da mina, vai ajudar a achar o ouro.
MAIS INFORMAÇÕES: TIMING OF ARCHAIC HOMININ OCCUPATION OF DENISOVA CAVE IN SOUTHERN SIBERIA. NATURE, VOL. 565, PÁG. 595 (2019)
*É BIÓLOGO
https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,caverna-cheia-de-ouro,70002704484