Cientistas encontram os primórdios da moralidade no comportamento de primatas
Nicholas Wade (The New York Times – 20/03/2007)
Alguns animais são surpreendentemente sensíveis ao sofrimento dos outros. Chimpanzés, que não sabem nadar, morreram afogados em piscinas de zoológico tentando salvar os outros. Quando podem só obter comida puxando uma corrente que também desfere um choque elétrico a um companheiro, macacos rhesus passam fome por vários dias.
Biólogos argumentam que esses e outros comportamentos sociais são os precursores da moralidade humana. Eles também acreditam que, se a moralidade nasceu de regras de comportamento formuladas pela evolução, cabe aos biólogos, e não aos filósofos ou teólogos, dizer quais são essas regras.
Filósofos especialistas em moral não levam a sério a intenção dos biólogos de anexarem o assunto, mas interessam-se pelo que os biólogos têm a dizer e iniciou-se um diálogo acadêmico entre eles.
O primeiro grito de batalha foi do biólogo Edward O. Wilson, há mais de 30 anos, quando sugeriu em seu livro “Sociobiology” (sociobiologia) que chegara “a hora de a ética ser removida temporariamente das mãos dos filósofos” e passar aos biólogos. Talvez ele tenha corrido antes do tiro de largada, mas nas décadas que se passaram os biólogos fizeram um progresso considerável.
No ano passado, Marc Hauser, biólogo evolucionário de Harvard, propôs em seu livro “Moral Minds” (mentes morais) que o cérebro tem um mecanismo geneticamente determinado para adquirir regras morais, uma gramática moral universal. O mecanismo seria similar ao maquinário neural usado para aprender uma língua. Em outro livro recente, “Primates and Philosophers” (primatas e filósofos), o primatologista Frans de Waal defende, contra as críticas dos filósofos, a opinião que a raiz da moralidade pode ser vista no comportamento social de macacos e gorilas.
De Waal, que é diretor do Centro Living Links da Universidade Emory, argumenta que todos os animais sociais tiveram que restringir ou alterar seu comportamento de várias formas para a vida em grupo valer a pena. Essas restrições, evidentes em macacos e ainda mais em chimpanzés, também fazem parte da herança humana, e em sua opinião formam o conjunto de comportamentos do qual a moralidade humana foi formada.
Muitos filósofos acham difícil pensar em animais como seres morais. Waal de fato não alega que possuem moralidade, mas argumenta que a moralidade humana seria impossível sem certas bases emocionais que claramente estão em funcionamento em sociedades de chimpanzés e gorilas.
As opiniões de Waal baseiam-se em anos de observação de primatas não-humanos, começando com um trabalho sobre agressão nos anos 60. Ele observou que, depois de brigas entre dois combatentes, outros chimpanzés consolavam o perdedor. No entanto, batalhas com psicólogos o impediram de atribuir estados emocionais aos animais, e levou 20 anos para voltar ao assunto.
Ele descobriu que a consolação era universal entre os grandes primatas não-humanos, mas geralmente ausente em macacos menores – em algumas espécies as mães nem confortam um filhote ferido. Consolar o outro requer empatia e um grau de autoconsciência que apenas primatas parecem possuir, argumenta Waal. Ao perceber a empatia, o pesquisador passou a explorar as condições para a moralidade.
A moralidade humana poder envolver noções de direito e justiça e distinções éticas sofisticadas, mas começa com uma preocupação com os outros e a compreensão de regras sociais sobre como devem ser tratados, diz Waal. Neste nível inferior, há o que os primatólogos consideram uma sobreposição considerável entre o comportamento das pessoas e de outros primatas sociais.
A vida social requer empatia, que é especialmente evidente em chimpanzés, assim como formas de colocar fim a hostilidades internas. Toda espécie de macaco tem seu próprio protocolo de reconciliação após brigas, descobriu Waal. Se dois machos não fazem as pazes, as fêmeas freqüentemente aproximam os rivais, como se sentissem que a discórdia tornasse a comunidade pior e mais vulnerável a ataques de vizinhos. Ou então elas evitam uma briga tirando pedras das mãos dos machos.
Waal acredita que essas ações sejam tomadas para o bem maior da comunidade, de forma distinta das relações de pessoa a pessoa, e que são precursoras significativas da moralidade em sociedades humanas.
Macacos e chimpanzés têm um sentido de ordem social e regras sobre o comportamento esperado, a maior parte relacionada à natureza hierárquica de suas sociedades, na qual cada membro reconhece seu próprio lugar. Macacos rhesus jovens aprendem rapidamente a se comportar e ocasionalmente têm um dedo do pé ou da mão arrancados por uma mordida como punição.
Outros primatas também têm um sentido de reciprocidade e justiça. Eles se lembram de quem lhes fez favores e quem lhes fez mal. Chimpanzés têm maior probabilidade de dividir a comida com os que limparam os pelos deles. Macacos-prego mostram seu desprazer ao receberem recompensa menor do que um parceiro por alguma tarefa, como um pedaço de pepino em vez de uma uva.
Esses quatro tipos de comportamento – empatia, capacidade de aprender e seguir regras sociais, reciprocidade e fazer as pazes – são a base da sociabilidade. Waal acredita que a moralidade humana nasceu da sociabilidade primata, mas com dois níveis extra de sofisticação. As pessoas impõem seus códigos morais com muito mais rigor, pelo uso de recompensas, punições e fama. Elas também aplicam um grau de julgamento e razão, para o qual não há paralelos nos animais.
A religião pode ser vista como outro ingrediente especial das sociedades humanas, apesar de ter emergido milhares de anos após a moral, na opinião de Waal. Há precursores claros de moralidade em primatas não-humanos, mas não há precursores da religião. Então parece razoável assumir que, quando os humanos evoluíram a partir dos chimpanzés, a moralidade emergiu primeiro, seguida pela religião. “Vejo as religiões como adições recentes”, diz ele. “Sua função pode estar relacionada com a vida social e a imposição de regras com narrativas, que é o que as religiões de fato fazem.”
Waal acredita que a moral humana pode ser severamente limitada pelo fato de ter evoluído como forma de união contra adversários, com as restrições morais sendo observadas somente para o grupo interno, não para os de fora. “A ironia profunda é que nossa conquista mais nobre – a moral – tem laços evolucionários com nosso comportamento mais básico – a guerra”, escreve. “O sentido de comunidade requerido pela primeira foi fornecido pela última.”
Waal enfrentou muitos críticos na biologia evolucionária e na psicologia. O biólogo evolucionário George Williams negou a moralidade como um mero subproduto acidental da evolução, e os psicólogos fizeram objeções à atribuição de estados emocionais aos animais. Waal convenceu seus colegas, depois de muitos anos, que proibir a inferência de estados emocionais era pouco razoável pela continuidade evolucionária esperada entre humanos e outros primatas.
Seu público mais recente são os filósofos morais, muitos interessados em seu trabalho e de outros biólogos. “Nos departamentos de filosofia, um número crescente de pessoas são influenciadas pelo que têm a dizer”, disse Gilbert Harman, filósofo de Princeton.
Philip Kitcher, filósofo de Columbia, gosta da abordagem empírica de Waal. “Não tenho dúvidas de que há padrões de comportamento que compartilhamos com nossos parentes primatas e que são relevantes às nossas decisões éticas”, disse ele. “Os filósofos sempre foram seduzidos pelo sonho de um sistema de ética completo e acabado, como a matemática. Não acredito que seja assim, de forma alguma.”
Mas a ética humana é consideravelmente mais complicada do que a empatia que Waal descreveu nos chimpanzés. “Empatia é a matéria prima da qual um conjunto ético mais complicado pode ser formulado”, disse ele. “No mundo, somos confrontados com diferentes pessoas que podem ser alvos de nossa empatia. Ética é decidir quem ajudar, por que e quando.”
Muitos filósofos acreditam que o raciocínio consciente tem grande papel no controle do comportamento ético e, portanto, não acreditam que tudo nasça das emoções, como a empatia, evidente nos chimpanzés. O elemento imparcial da moralidade vem da capacidade de raciocinar, escreve Peter Singer, filósofo de Princeton, em “Primates and Philosophers” (primatas e filósofos). Ele diz: “A razão é como uma escada rolante – quando entramos, não podemos descer até que tenhamos chegado aonde nos leva.”
Era essa a opinião de Immanuel Kant, observou Singer, que acreditava que a moral deve ser baseada na razão, enquanto o filósofo escocês David Hume seguido de Waal, argumentou que os julgamentos morais nascem das emoções.
Biólogos como Waal acreditam que a razão é usada apenas depois de se chegar a uma decisão moral. Eles argumentam que a moral evoluiu em uma época em que as pessoas viviam em pequenas sociedades e freqüentemente tinham que tomar decisões instantâneas de vida ou morte, sem tempo para uma avaliação consciente de escolhas morais. O raciocínio vinha depois, como justificativa post hoc. “O comportamento humano deriva, acima de tudo, de julgamentos rápidos, automatizados e emocionais e apenas secundariamente de processos conscientes mais lentos”, escreve Waal.
Por mais que celebremos a racionalidade, as emoções são nosso compasso, provavelmente porque foram moldadas pela evolução, na opinião de Waal. Por exemplo, diz ele: “As pessoas são contra soluções morais que envolvem fazer dano ao outro com as mãos. Isso pode ser porque a violência feita com a mão foi sujeita à seleção natural, enquanto deliberações utilitárias não.”
Filósofos têm outro argumento para justificar por que os biólogos não podem, em sua opinião, chegar ao cerne da moralidade: é que as análises biológicas não conseguem cruzar o vão entre o que “é” e o que “deveria ser”, entre a descrição dos comportamentos e a questão de porque são certos ou errados. “Talvez você identifique algum valor e conte uma história evolucionária para explicar porque o mantemos, mas sempre há aquela questão radicalmente diferente: se deveríamos mantê-lo”, diz Sharon Street, filósofa da Universidade de Nova York. “Isso não é para minimizar a importância do que fazem os biólogos, mas mostra por que séculos de filosofia moral são também incrivelmente relevantes.”
Jessé Prinz, filósofo da Universidade da Carolina do Norte, dá aos biólogos ainda menos campo. Ele acredita que a moralidade foi desenvolvida após o término da evolução humana e que os sentimentos morais são moldados pela cultura, não pela genética. “Seria uma falácia assumir que uma verdadeira moralidade seria um comportamento instintivo e não guiado pelo que devemos fazer”, disse ele. “Um dos princípios que podem guiar a moralidade pode ser o reconhecimento de igual dignidade para todos os seres humanos, e isso parece não ter precedentes no mundo animal.”
Waal não aceita a opinião dos filósofos que biólogos não podem passar do que “é” para o que “deve ser”. “Não tenho certeza de quão realista é essa distinção”, disse ele. “Animais têm aquilo que ‘deve ser’ feito. Se uma jovem entra em uma briga, a mãe deve se levantar e defendê-la. No compartilhamento de comida, animais pressionam os outros – o primeiro tipo de situação de qual é o comportamento ‘devido’.”
A definição de moralidade de Waal é ainda mais terrena do que a de Prinz. Moralidade, escreve, é “um sentido de certo e errado, nascido de sistemas grupais para administração de conflitos, baseado em valores compartilhados.” As bases da moralidade não são bons comportamentos, mas capacidades mentais e sociais para construir sociedades “nas quais valores compartilhados restringem o comportamento individual, por um sistema de aprovação e reprovação”.
Por essa definição, os chimpanzés, em sua opinião, realmente possuem algumas capacidades de comportamento inseridas em nossos sistemas morais. “A moral é tão firmemente enraizada na neurobiologia quanto tudo o mais que fazemos ou somos”, escreveu Waal em seu livro de 1996 “Good Natured” (de boa natureza). Biólogos ignoraram essa possibilidade por muitos anos, acreditando que, como a seleção natural é cruel e sem misericórdia, somente poderia produzir pessoas com as mesmas qualidades. Mas essa é uma falácia, na opinião de Waal. A seleção natural favorece organismos que sobrevivem e reproduzem-se, por qualquer meio. E deu às pessoas um “compasso que leva em consideração os interesses de toda a comunidade, que é a essência da moralidade humana”, escreve em “Primates and Philosophers”.
Fonte: Fonte: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/nytimes/2007/03/20/ult574u7339.jhtm