Bicho também é gente, e vice-versa
postado em 05 set 2007

(Reprodução de matéria publicada no Jornal O Estado de 02.09.2007)

Além de parentes nossos (Darwin explica), os animais também sofrem, sentem dor, entram em pânico e se estressam

Sérgio Augusto

Segunda-feira, ao anunciar o Projeto Caju, o presidente Lula lamentou ter passado a infância preferindo comer as preás que seus irmãos caçavam em vez de caju, que no Nordeste é mato. “Em algum momento da história, algum de nós cometeu um erro contra o caju.” E os “erros” que até hoje se cometem contra as preás, presidente?

No mesmo dia em que Lula admitiu, en passant, que caçar e comer preás é “uma prática ambientalmente incorreta”, o professor Isaias Raw, presidente da Fundação Butantã, publicou neste jornal um artigo sobre um projeto de lei, em tramitação na Câmara dos Deputados, estabelecendo normas para assegurar o bem-estar animal em experiências científicas. O artigo, polido e informativo, assegurava que a lei interromperia completamente a produção de vacinas e remédios. Outros cientistas já se manifestaram sobre o assunto, com a mesma dose de alarmismo, não raro enfiando nos que combatem o tratamento cruel imposto a animais em laboratórios a carapuça de monstros sádicos que menosprezam a saúde pública.

O autor do projeto é o deputado Ricardo Tripoli, que, por ser tucano, corre o risco de ser tachado de corporativista por algum cientista metido a engraçadinho. Tripoli, que só é ave metaforicamente, tem pelos bichos uma compaixão que deveria ser compartilhada por todos os seus semelhantes. Há dois anos, ainda deputado estadual, conseguiu que a Assembléia Legislativa de São Paulo aprovasse o Código de Proteção dos Animais, que proibia a realização de rodeios e a criação de animais em confinamento, como aves e bovinos. Por pressão da Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (Faesp), o Tribunal de Justiça do Estado concedeu liminar, suspendendo a aplicação do código, que, segundo o presidente da Faesp, traria “conseqüências nefastas” ao setor produtivo por ele representado, “como a desestabilização das atividades e da própria economia do Estado, além do aumento do desemprego”. Só faltou incluir entre as “conseqüências nefastas” do código a bancarrota de Barretos, a aceleração do aquecimento global e o aumento da violência urbana.

Claro que, se transformados em leis, os projetos do tucano poriam em risco a sobrevivência de circos, rodeios, laboratórios, avicultores, suinocultores e pecuaristas defasados, irresponsáveis e desumanos. Isso não é bom, é excepcional, já que nos atualizaria com o que nações mais civilizadas e cientificamente mais qualificadas já vêm implementando há anos.

A comunidade científica brasileira sabe que, aspas para o professor Raw: “muitas pesquisas vêm sendo realizadas para desenvolver ensaios que possam ser realizados sem usar animais vivos”. Já há quem esteja na pista de organismos especialmente criados, imunes a dor e a qualquer tipo de estresse e sofrimento, para que camundongos, ratos, coelhos, macacos, gatos e outros bichos possam ser definitivamente alforriados pelos sinhôs de proveta. Não são ralas as esperanças de que pesquisadores do J. Craig Venter Institute, nos arredores de Washington, por exemplo, estejam próximos de obter resultados surpreendentes, manipulando bactérias e outros organismos que poderão tornar inútil o tão temido artigo 110 do projeto de lei de Ricardo Tripoli, que “veda o uso de animais para fins científicos quando causar dor, stress ou desconforto ao animal”.

O deputado poderia fazer uma emenda ao projeto, estendendo o benefício do “tratamento digno” aos seres humanos que, por ventura, venham tomar o lugar dos animais em pesquisas científicas. É um velho sonho de muita gente: terroristas, estupradores e assassinos irrecuperáveis redimindo-se de seus crimes ajudando a salvar a humanidade no lugar de seres não-humanos que mal algum causaram aos humanos. Direitos iguais para todos. Afinal, é isso que preconizam os paladinos da “libertação animal”, aqui e ali hostilizados e perseguidos como o foram os primeiros abolicionistas, as primeiras sufragistas e os primeiros ativistas do movimento pelos direitos civis.

Na semana retrasada, os jornais divulgaram a história (com final feliz) de um elefante viciado em heroína por traficantes de animais ativos na fronteira de Mianmá e China (aquele país que, para combater a raiva, chacinou 54.429 cães, muitos deles já vacinados). Os traficantes em questão também podiam ser trancafiados num laboratório para testes de vacinas e, em especial, resistência a drogas – com todos aqueles que promovem rinhas de galo (abra o olho, Duda Mendonça!), brigas de cachorro, touradas, farra do boi, traficam marfim e trucidam rinocerontes para, com seu chifre, criar poções falsamente miraculosas.

Faço essa sugestão sem o menor constrangimento, pois não padeço do que o filósofo moral Peter Singer chama de “especiesismo”, preconceito de espécie, similar (mas não igual, esclareça-se) ao racismo e ao escravismo: uma forma de discriminação que coloca os humanos num pedestal, como os únicos repositórios de todos os valores morais, e despreza os seres de outras espécies. O fato de sermos racionais só aumenta a nossa responsabilidade em relação às demais espécies, a nossa obrigação de termos compaixão por aqueles que, além de parentes nossos (Darwin explica), também sofrem, entram em pânico, se estressam, sentem dor – e são mais solidários do que nós.

Em 23 de janeiro de 1994, o Jornal do Brasil publicou uma reportagem cujo título (Crueldade com animais preocupa cientistas) só dizia da missa a metade. Seu subtítulo (Especialistas temem que Brasil se torne território livre para experiências já proibidas nos países da Comunidade Européia) antecipava um futuro preocupante. Treze anos se passaram e nem o mais brando projeto de lei voltado especificamente para a regulamentação de uso de animais em pesquisas científicas, apresentado em 1995 pelo sanitarista (e então deputado) Sérgio Arouca, conseguiu emplacar.

Somos atrasados em inúmeras coisas, e uma delas diz respeito aos avanços da ciência. A Fiocruz, por uns tempos dirigida por Arouca, demorou a suspender o crudelíssimo teste de irritação ocular em coelhos (teste de Draize), dispensado, havia tempo, em países mais adiantados. A quantos outros sofrimentos superados e dispensáveis não submetemos as cobaias de nossos laboratórios?

O lado exclusivamente científico da questão é por demais complexo para as dimensões de um artigo. Já os demais, não. Nada justifica que, visando basicamente ao lucro e à vaidade, floresçam, infrenes, uma indústria de alimentos cuja matéria-prima é o resultado de uma sucessão de torturas e uma indústria de roupas e calçados afeita a práticas nefandas. Agasalhos de pele animal só deveriam ser usados por esquimós. Tenho a maior simpatia pelos ativistas da Peta (People for the Ethical Treatment of Animals), que costumam manchar de tinta vermelha os casacos de pele das dondocas do eixo Nova York-Paris e fazer campanha contra a editora de moda da revista Vogue, Anna Wintour, não por ela vestir Prada, mas por ser uma diaba que veste e incentiva o consumo de peles, que só nos animais são bonitas.

Fonte: http://txt.estado.com.br/suplementos/ali/2007/09/02/ali-1.93.19.20070902.15.1.xml?