Até parece gente
postado em 10 set 2007

(Reprodução de matéria publicada na Revista da Folha em 09.09.2007 ano 16 n° 784)

Grupo defende que chimpanzés agem à semelhança humana e querem banir a exibição deles em circos e zôos

Emílio é o “mr. simpatia” do santuário: além de escovar os dentes, distribui abraços aos visitantes

Até parece gente
por Adriana Küchler
foto Beatriz Toledo

Aos 8 anos, Guga é um garoto esperto. Adora “ler” revistas, escovar os dentes e receber cafuné dos pais, de quem morre de ciúmes. Gosta também de futucar os sapatos das visitas.

O “pai” de Guga é o empresário cubano radicado no Brasil Pedro Ynterian, 67, dono de uma espécie de santuário ecológico, instalado num sítio, que abriga Guga

e outros 42 de sua espécie em Sorocaba, num área de 100 mil m2 -o equivalente a 13 campos de futebol do Morumbi. Com a “família” de primatas, gasta de R$ 30 mil a R$ 40 mil por mês.

Ele faz parte de um grupo cada vez maior que acredita que, por ter hábitos como os de Guga, os grandes primatas partilham com a gente mais do que simplesmente 98,6% de DNA. Com outros três santuários, em Vargem Grande Paulista, Ibiúna e Curitiba, o santuário faz parte do projeto internacional GAP (Projeto de Proteção dos Grandes Primatas). Eles têm um objetivo um tanto ousado: defender os direitos “humanos” desses bichos.

Apaixonado por macacos desde criança, Pedro teve vários como pets enquanto morou no Peru e no Equador. A idéia de fundar o GAP surgiu quando ele comprou o bebê Guga de um criador e viu que havia feito “uma grande besteira”. “Coloquei Guga num apartamento em Moema e descobri que o neném chimpanzé não difere de um humano. Acorda de noite, quer mamadeira, tem que trocar fralda. Contratei uma babá.”

Logo Guga se mudou para Sorocaba, no interior paulista, com outros macacos que Pedro foi comprando. “Macacos, não”, ele explica. Os chimpanzés (assim como nós, gorilas, orangotangos e bonobos) são grandes primatas, subdivisão dos primatas. A outra subdivisão é composta por macacos. “Para simplificar, macacos, em geral, têm rabo, e nós não.”

A semelhança entre “nós” é sempre reforçada por Pedro, pelo projeto GAP e pelos próprios chimpanzés. Luck e Billy adoram mulheres e olham para elas como um homem olharia, de cima a baixo. Já Mônica e Samantha são ciumentas e não gostam de moças por perto lhes roubando a atenção. “Eles têm os mesmos sentimentos que a gente. Fica claro pela expressão”, diz a veterinária do GAP, Camila Gentile, 27.

Questionada sobre outros bichos que também demonstram sinais de inteligência, como os macacos e os golfinhos, Camila tenta ser delicada. “Sem excluir os outros animais, que eu também adoro, mas eles são mais evoluídos.” Os chimpanzés brincam com a equipe do GAP, fazem carinho e se comunicam por sinais. Segundo o diretor do projeto, só falta falarem. “Eles têm a laringe muito pequena e, por isso, não conseguem articular palavras. Se não fosse isso, você estaria aqui entrevistando um deles.”

Prozac com banana
A principal reivindicação do GAP é que os bichos não sejam expostos como entretenimento para humanos -tanto que a visita ao santuário só é permitida a voluntários.

Para efeito de comparação, Pedro lembra os primeiros “zoológicos” em que pessoas com anomalias eram exibidas como aberrações. O principal problema então seriam os circos e os zoológicos. É de lá que vêm a maioria dos chimpanzés do santuário.

Com a crescente proibição do uso de animais em circos, já em vigor na cidade de São Paulo, entre outras, os problemas dos zoológicos ganham mais atenção. “Todos os que vêm do zoológico têm distúrbios psicológicos”, afirma Pedro. “A maioria vive em espaços pequenos, alguns moram sozinhos e ficam expostos muitas horas ao público. Eles precisam de companhia e de privacidade. Senão, enlouquecem.”

Charles, que já passou por três zoológicos, é o principal exemplo. Tratado por um psiquiatra, toma Prozac e se mutila. Tem medo de visitas estranhas.

Enquanto a lei brasileira determina que uma família de chimpanzés precisa de 60 m2 para viver, no santuário, cada um tem cerca de 2.000 m2. “Os zoológicos europeus estabelecem cerca de 1.000 m2 para um grupo. Nossa lei está defasada.”

A campanha criou um atrito entre o GAP e os zoológicos. Segundo o diretor de comunicação da Sociedade de Zoológicos do Brasil (SZB), Luiz Pires, 48, a origem do problema seriam os circos. “A iniciativa do santuário é louvável. Mas é preciso lembrar que, durante décadas, o único abrigo para os chimpanzés maltratados e abandonados pelos circos eram os zoológicos”, diz.

Ele acrescenta que a maioria dos animais já chega aos zôos com problemas psicológicos. Segundo Luiz, os zoológicos estão tentando se modernizar e criar espaços para que os bichos só se mostrem “quando quiserem”.

O Ibama, parceiro do GAP, fiscalizou as condições de todos os zoológicos do país de 2002 a 2006. Muitos foram fechados e outros devem se adaptar à lei. O órgão apóia o fim do uso de animais em circos, mas diz que ainda há chão pela frente até que eles possam deixar de “se exibir” em zoológicos. “É um tema que ainda está sendo pesquisado. Precisamos de mais subsídios”, diz o coordenador de fauna do Ibama, João Pessoa Moreira Júnior, 44.

Segundo Luiz, a SZB está começando um projeto de pesquisa genética dos chimpanzés brasileiros para garantir a preservação da espécie.

O chimpanzé não é nativo do Brasil, país onde esse animal é considerado “exótico” e, como tanto, pode ser comprado e vendido. Os “pioneiros” vieram da África, trazidos por circos. Hoje, são cerca de 120 animais, a maioria abrigada em zoológicos.

Em processo de extinção, atualmente existem apenas 150 mil chimpanzés vivendo em matas africanas. Em 1900, eles eram entre 1 milhão e 2 milhões.

A possibilidade de devolver os chimpanzés ao seu habitat natural é utópica na avaliação do Ibama. “A maioria está acostumada ao cativeiro”, diz João Pessoa. “Eles teriam pouquíssimas chances de sobreviver na natureza.”

Não é à toa que o santuário dos primatas lembra uma prisão. “Precisamos criar uma estrutura forte para que eles não fujam. E, quando fogem, não vão para a mata, eles vêm para a minha casa”, diz o cubano Pedro. “Para eles, assim como para nós, a segurança é o principal.” Além de companhia, espaço e, claro, comida.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/revista/rf0909200716.htm