Justiça de outros países já concederam habeas corpus para ursos e chimpanzés. No Brasil, animais passariam a ser considerados “bens móveis”
Por Renan Barbosa/Gazeta do Povo
A discussão sobre o estatuto moral e jurídico dos animais ganhou um novo capítulo no Brasil no último dia 25. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou um projeto de lei que modifica o Código Civil. Os animais deixariam de ser “coisas” para ser “bens móveis”. O projeto, que já passou pelo Senado, vai para o plenário. A discussão está apenas começando, tanto aqui, quanto em outros países, onde a luta jurídica pelo reconhecimento do direito dos animais está pegando fogo. Nos últimos anos, vários países europeus deixaram de considerar que os animais são coisas. Entre nossos vizinhos latino-americanos, alguns bichos já ganharam, na Justiça, o direito à liberdade.
De acordo com Rodrigo Xavier Leonardo, professor de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o PL 3670/2015 aprovado pela CCJ não promove alterações profundas por passar a considerar os animais bens móveis. Para o jurista, a mudança principal está no parágrafo único a ser incluído no artigo 83 do Código Civil: “Os animais não serão considerados coisas”. Isso seria, na visão do professor, “uma abertura normativa para eventualmente, no futuro, desenvolver um regime jurídico intermediário aos animais irracionais, por considerá-los seres dotados de sensibilidade e, portanto, diverso das coisas”.
Segundo o juiz federal Anderson Furlan, embora o projeto tenha “uma importância mais simbólica do que prática”, ele é um primeiro passo importante na compreensão de que devemos “ter em conta que a condição humana compartilha com os animais a senciência [capacidade de sentir], a capacidade de sofrer, de sentir dor e, portanto, o interesse legítimo de não receber tratamento cruel”. Furlan destaca que inúmeros países, entre os quais Alemanha, Áustria, Suíça, França e Portugal, já aprovaram leis reconhecendo que animais não são coisas.
De fato, o Tratado de Lisboa, aprovado em 2009 e que reformulou o regramento da União Europeia, prevê que os estados-membros deverão “ter plenamente em conta as exigências em matéria de bem-estar dos animais, enquanto seres sensíveis, respeitando simultaneamente as disposições legislativas e administrativas e os costumes dos Estados-Membros, nomeadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e patrimônio regional”.
Mas as mudanças ainda não são claras. “Ser uma coisa ou um bem móvel não traz grandes diferenças do ponto de vista dos animais. Eles continuarão sendo apropriados, comercializados, aprisionados e assassinados“, afirma Furlan. “A regra comum para todos os países que aprovaram essas leis, assim como será no Brasil, [é que] os animais que deixam de ser coisas continuarão a ser considerados coisas se não houver lei específica dizendo o contrário”, explica o juiz.
Sandra e Cecília
As demandas por judicialização chegaram também às lutas pelos direitos dos animais. Diversas organizações ativistas têm tentado esse reconhecimento pela via judicial. Em 2014, a Associação de Funcionários e Advogados pelos Direitos dos Animais (Afada) conseguiu um feito de repercussão mundial: a Justiça da Argentina declarou que a orangotango Sandra era um “sujeito de direitos não humano”.
O caso de Sandra entrou em um emaranhado processual no Judiciário argentino, em meio a divergências de especialistas e sucessivas revisões. Sandra ainda vive presa no zoológico, mas, em novembro do ano passado, a Justiça de Mendoza, no oeste do país, concedeu um habeas corpus à chimpanzé Cecília para que ela viesse para um Santuário no Brasil. “Eu nem acreditei. Era uma luta de uma única ONG contra todo o governo e, inclusive, contra o próprio Judiciário”, contou ao Justiça & Direito Pablo Buompadre, presidente da Afada.
Com Cecília deu certo. A chimpanzé chegou à Sorocaba, no interior de São Paulo, para morar no Santuário dos Grandes Primatas em abril deste ano. O local é mantido pelo Projeto GAP, um “movimento internacional cujo objetivo maior é lutar pela garantia dos direitos básicos à vida, liberdade e não tortura dos grandes primatas não humanos”, segundo o site da instituição. O projeto nasceu em 1994, com o apoio dos filósofos Peter Singer e Paola Cavalieri e, em 2000, chegou ao Brasil.
Na sentença que atendeu ao pedido da Afada, o Poder Judiciário de Mendoza afirmou que “[o] chimpanzé não é uma coisa, não é um objeto do qual se possa dispor como se dispõe de um automóvel ou de um imóvel. Os grandes símios são sujeitos de direito e incapazes de fato”. A capacidade de fato – ou capacidade de exercício –, que também existe no direito brasileiro, é a aptidão que o sujeito de direitos tem para exercitar atos jurídicos. Do ponto de vista jurídico, os menores de 16 anos, por exemplo, são sujeitos de direitos, embora absolutamente incapazes (de fato).
A corte ponderou também que a sentença não criaria direitos para todos os animais e vegetais, nem igualaria os direitos dos grandes símios aos dos humanos. Tudo que a decisão faz, na visão do tribunal, é dizer que os grandes símios “possuem um catálogo de direitos fundamentais que deve ser objeto de estudo e de enumeração pelos órgãos estatais competentes, tarefa que excede o âmbito judicial”. Os chimpanzés têm direitos, mas ninguém sabe bem quais são.
A decisão judicial de Mendoza aceitou, em seu raciocínio, evidências de “proximidade genética entre os chimpanzés e os seres humanos, [e que os chimpanzés] têm capacidade de raciocinar, são inteligentes, têm consciência de si mesmos, diversidade de culturas, expressões de jogos mentais, manifestações de vontade, uso e fabricação de ferramentas para alcançar os alimentos ou resolver problemas sensíveis da vida cotidiana, [têm] capacidade de abstração, habilidade para manejar símbolos na comunicação, consciência para expressar emoções como alegria, frustrações, desejos, organização planejada para batalhas intraespecíficas e emboscadas de caça, têm habilidades metacognitivas; possuem status moral, psíquico e físico; cultura própria; sentimentos de afeto (se acariciam e se limpam); são capazes de enganar”.
Chucho
Em julho deste ano, um juiz da Corte Suprema de Justiça da Colômbia concedeu um habeas corpus para o urso “Chucho”, que, depois de viver 18 anos em uma reserva, foi enviado para um zoológico. O caso foi parar na Justiça depois que uma lei de 2016, aprovada pelo Congresso colombiano, classificou os animais como “seres sencientes”. O advogado do urso argumentou que, apesar desse reconhecimento, a lei não estabeleceu mecanismos jurídicos próprios para proteger uma violação imediata do direito dos animais. Por isso, entrou com o pedido de habeas corpus. O advogado de “Chucho” citou em seu pedido, como precedente, o caso de Cecília, na Argentina.
A reforma legislativa tinha sido questionada na Corte Constitucional da Colômbia, que rejeitou a inconstitucionalidade da lei. “Como a caracterização [dos animais] como bens não é suficiente, no contexto atual e com o objetivo de limitar os atributos da propriedade, é que se caracterizam como ‘seres sencientes’. Essa qualificação supõe um limite derivado da função ecológica, mediante a qual se proíbem os maus tratos, a geração injustificada de dor ou seu abandono”, escreveu a Corte em sua decisão de agosto, que manteve em vigor a lei aprovada.
No entanto, a decisão de primeira instância, no caso Chucho, negou o pedido do advogado, porque entendeu que a Corte Constitucional da Colômbia, no julgamento anterior, já tinha considerado que os animais, apesar de sencientes, não são sujeitos de direito. Portanto, não poderiam ser protegidos por habeas corpus. Para os animais, restaria a proteção das Ações Populares, com a possibilidade de concessão de medidas cautelares.
O juiz Luis Armando Tolosa Villabona discordou da primeira instância e concedeu o habeas corpus, determinando, em julho deste ano, que o zoológico transferisse o urso “Chucho” para a reserva onde viveu por 18 anos ou para um habitat adequado. Na fundamentação da decisão, o magistrado resolveu dar um passo além da Corte Constitucional Colombiana. “[i]mpõe-se assinalar que não apenas os seres humanos são sujeitos de direito, mas também as realidades jurídicas, algumas das quais, por ficção jurídica, já são pessoas, como as [pessoas] ‘morais’ […] Se as realidades jurídicas fictas são sujeitos de direito, por que quem tem vida ou são ‘seres sencientes’ não podem sê-lo?”, ponderou Villabona.
Para o magistrado, os animais sencientes são sujeitos de direito sem deveres. “Se se considera que [os animais] não podem ser sujeitos de direito por não terem deveres recíprocos, isso significa em um auto-antropocentrismo individualista ou coletivista, totalmente egoísta e reducionista”, argumentou o magistrado. “Os animais devem estar livres de incômodos, sem fome ou sede, livres para desdobrar seus comportamentos naturais […] Especialmente, devem estar livres de medo e angústia, porque seu cativeiro gera neles medo e angústia, temor, estímulos negativos e estresse”, escreveu ainda.
Em marcha
Os principais contornos do debate atual sobre direitos dos animais começaram a surgir nos anos 1960, com a fundação do Grupo de Oxford, na Inglaterra. Foi a partir dos contatos com o grupo que o psicólogo e ativista Richard Ryder cunhou um termo que ganharia o mundo: o “especismo”. A noção se refere a um pretenso preconceito, sem base racional, que negaria aos animais os direitos que os seres humanos atribuem a si próprios.
Em 1975, a noção ganhou fama e contornos filosóficos com a publicação do livro Libertação Animal, do filósofo utilitarista Peter Singer. De acordo com a formulação mais recente da ideia, no livro Ética Prática, publicado em 1993, “[o]s racistas violam o princípio da igualdade ao darem maior importância aos interesses dos membros de sua raça sempre que se verifica um choque entre os seus interesses e os interesses dos que pertencem à outra raça […] Da mesma forma, aqueles que eu chamaria de ‘especistas’ atribuem maior peso aos interesses de membros da sua própria espécie quando há um choque entre os seus interesses e os interesses dos que pertencem a outras espécies”.
Ryder organizou, em 1977, a Conferência de Cambridge, que deu origem à “Declaração contra o Especismo”, assinada por 150 pessoas presentes. “Na medida em que acreditamos haver ampla evidência que muitas outras espécies são capazes de sentir, condenamos totalmente a inflicção de sofrimento sobre nossos irmãos e irmãs animais e a supressão de seus prazeres, a não ser que isso seja necessário para seu próprio bem […] Nós declaramos nossa crença de que todas as criaturas sencientes têm direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Conclamamos pela proteção desses direitos”, diz o documento. Um ano depois, a UNESCO aprovou a Declaração dos Direitos dos Animais.
Em julho de 2012, apareceu um novo marco nas disputas: um grupo de neurocientistas assinou a “Declaração de Cambridge sobre a Consciência”, que buscou ponderar evidências científicas de que não apenas os seres humanos teriam as condições necessárias para ser considerados conscientes. “Evidências convergentes mostram que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência, juntamente à capacidade de exibir comportamentos intencionais. Em decorrência disso, o peso das evidências indica que os seres humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência”, diz o documento.
Ressalvas
O filósofo Francisco Razzo questiona a ideia de que os animais têm direitos em virtude de sua condição. “O único direito possível para os animais é o direito positivo. Os seres humanos têm direitos fundamentais e naturais, dada a própria estrutura e condição da vida humana. Mas os únicos direitos que os animais podem ter são os direitos atribuídos justamente pela comunidade humana”, afirmou em entrevista.
Em artigo publicado nesta Gazeta do Povo, Razzo afirmou que “[o] animal não é, por natureza, um ser político. Em vista dessa condição, animais não possuem direitos. E por uma razão muito simples: o direito é propriedade fundamental de seres que reconhecem, evocam e comunicam o que lhe é próprio, a parte que lhe cabe, o que é seu, bem como reconhecem aquilo que é de cada um, isto é, o justo”. Para Razzo, no entanto, dizer que os animais não podem ter direitos não significa que os seres humanos possam ser cruéis com eles.
Na Declaração de Cambridge, Razzo detecta uma visão “fisicalista” da mente. “Há uma descrição de que os animais desenvolvem consciência por causa de um aparato físico e neural, que eles teriam algum nível de racionalidade e intenção e que esses níveis seriam razões suficiente e necessária para haver consciência”, avalia o filósofo, “mas não há no animal, de acordo com essas evidências, nenhuma relação de tipo intersubjetiva: eu não consigo formar com o animal não humano uma comunidade de seres que reclamam por direitos”, acrescenta.
O filósofo também vê com ressalvas a fundamentação consequencialista dos pleitos por direitos dos animais, que enfatiza sua condição de seres com capacidade de sentir. É o tipo de defesa – muito influente – que faz Peter Singer, por exemplo. “Toda ética consequencialista, por definição, defende a tese de que o que determina o valor moral das ações humanas são as suas consequências e não a qualidade das intenções ou a disposição do caráter do agente moral”, afirmou em outro artigo publicado nesta Gazeta do Povo.
Razzo segue na crítica ao consequencialismo: “[O] ‘Bem’ define-se por ‘qualquer coisa que desperte a máxima felicidade total’. A avaliação quantitativa da ‘felicidade total’ se reduz às análises das sensações de prazer e dor como único instrumento objetivo de que dispomos para julgar o valor das nossas ações”, afirma. “Por ser uma avaliação quantificável e independente da qualidade da intenção ou do caráter do agente, então cabe à ciência natural positiva julgar, em última instância, se uma ação deve ser considerada moral ou imoral”.
Furlan reconhece, no entanto, que as diferenças entre os demais animais e os seres humanos não seriam apagadas pelo reconhecimento de direitos não humanos. “A dignidade dos seres humanos não será diminuída, mas aumentada, se reconhecerem, por exemplo, que os chimpanzés ou gorilas têm o mesmo direito à vida e liberdade que um feto que tenha nascido sem cérebro. Não é necessário que [os animais] tenham direito a voto, casamento ou à propriedade. Basta que tenham direito a ter uma existência digna durante seu breve tempo nesse planeta”, pondera o juiz.