SANTUÁRIO DE SOROCABA
Às 9:30 de cada manhã, nos dias em que estou no Santuário, coloco em uma das janelas do recinto dos chimpanzés Jango e Junior três garrafas com sopa quente. A seguir, dou duas garrafas para Billy e entro no recinto aberto de Luke e levo outras duas, junto com sucos e iogurtes.
De sua plataforma aérea, Junior me vê chegar com Luke e desce para procurar suas duas garrafas de sopa, pois já sabe que eu as deixei no caminho. A terceira possivelmente Jango já pegou e deixou as outras duas para seu querido amigo, que é muito comilão.
A sexta-feira passada (8 de junho) foi um dia miserável. Chuva sem parar, ventos e frio intenso, abaixo de 10° C, o que é uma raridade na área de Sorocaba. Junior me viu entrando no recinto de Luke e foi em busca de sua sopa, que pela primeira vez não estava lá, já que o carro onde ela estava tinha ido atender a uma emergência.
Ele se encaminhou para o túnel, como sempre faz, de onde visualiza uma boa parte do Santuário. Jango foi com ele como sempre. A sopa chegou em sua janela com atraso, depois do meio dia. Jango pegou sua garrafa e deixou as duas para seu amigo. Ele não sabia que seu amigo a essa hora possivelmente já estava morto, no túnel, de onde nunca mais sairia com vida.
No sábado, dia 9, quando fui colocar as três garrafas de sopa, percebi que as duas do dia anterior estavam lá sem mexer. Algo estava acontecendo. Apesar do dia infernal, com chuva incessante e frio intenso, Junior nunca deixaria de tomar aquela sopa, que tanto amava. Os tratadores perceberam que Jango estava diferente, queria contar-lhes algo e começaram a procurar Junior. O encontraram minutos mais tarde, caído frente a uma poça de sangue, produto possivelmente de um infarto fulminante, dentro do seu túnel.
A parte do Santuário que tem acesso àquela área ficou em silêncio. Seus colegas de outros recintos sabiam que algo trágico tinha acontecido. Talvez Jango deu a voz de alarme, no dia anterior quando estava anoitecendo, e uma gritaria se desatou no Santuário. Jango devia ter comunicado aos seus companheiros que Junior estava morto. Nós humanos não conseguimos entender a comunicação entre eles.
Junior era um chimpanzé robusto e pesava mais de 100 kg. Sofreu muito, viveu uma boa parte de sua vida num circo, no sul do país, onde foi viciado em cigarros e bebida. Quando o circo não conseguiu usá-lo mais, o doou ao Zoológico de Brasília. Lá viveu alguns anos até que a Dra.Cléa Lúcia Magalhães, veterinária chefe do zoo, e o diretor do mesmo na época, Raul Gonzáles, tomaram a sábia decisão de enviá-lo ao Santuário de Sorocaba. Poucos zoológicos têm essa sensibilidade e eles a tiveram, porque sabiam que Junior não duraria muito se continuasse vivendo na exibição pública.
Junior ficou conosco por mais de 7 anos. Ele devia ter entre 30 e 40 anos de idade. Viveu uma grande parte de seu tempo com Jango, que é um chimpanzé pequeno, meigo, que sofreu ainda mais nos circos onde viveu, já que o castraram e arrancaram todos os seus dentes.
Junior era comilão, não rejeitava nenhum alimento, gostava de tudo. Já tinha poucos dentes, a maioria apodreceu em sua boca, como acontece com os chimpanzés que não são bem tratados. Tinha uma tendência a desenvolver pequenos tumores em mãos e pés, que dificultavam sua locomoção, já que as dores o acompanhavam a cada canto que fosse. Vivia numa plataforma aérea, onde até dormia. Nós o forçávamos a descer para que fizesse exercício, colocávamos a comida longe dele, para que a procurasse. Mas Jango não entendia o por quê e levava a comida para ele. Se converteu em seu “garçom de luxo”. Quando descobrimos que adorava sopa quente, aí começamos a oferecê-la, a fim de forçá-lo a descer e andar.
Como Jango demorava para levar-lhe a sopa, ele descia para apanhá-la e com isso conseguimos que se movimentasse.
Com muito esforço, devido ao seu peso e tamanho, vários tratadores o tiraram do túnel. Catarina, que estava perto, começou a gritar e pedir ajuda. Os chimpanzés sabem o que é a morte e a temem. Nenhum dos chimpanzés dos recintos, onde podia ser vista a movimentação, se fez presente, já que eles sabiam horas antes – pelo aviso de Jango – que seu amigo estava morto.
Jango é azarado. Anos atrás, Gil, chimpanzé fêmea, com quem morava, teve o mesmo infarto e morreu na plataforma aérea. Agora seu grande amigo deixa mais um vazio em sua vida. Horas mais tarde, Jango ainda estava na entrada do túnel fechado, talvez esperando um milagre, aguardando Junior aparecer com um sorriso aberto e largo, como ele costumava fazer quando algo o agradava.
A morte de um chimpanzé para a família do GAP, em qualquer um de nossos Santuários, é uma tragédia sem fim. Sabemos que muitos deles chegaram fragilizados pela vida miserável que tiveram e que temos limites em nossa tarefa de recuperação. Porém, desejaríamos que aqueles chimpanzés que sobreviveram a tudo e a todos fossem imortais.
Junior foi enterrado em nosso cemitério, junto aos seus companheiros que partiram. Ninguém o jogou num lixão, o empalhou ou o usou para experiências. Ele, como todos os outros que o acompanham agora na outra vida, estarão sempre presentes em nossos corações.
Descanse em Paz, Grande Junior!
Dr. Pedro A. Ynterian
Presidente, Projeto GAP Internacional
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