A moral é animal
postado em 22 ago 2007

(Reprodução de matéria publicada na Revista Veja Ed. 2022 de 22.08.2007)

O maior dos primatologistas mostra que traços
“exclusivamente humanos” também se encontram
nos outros primatas

Marcelo Marthe
O holandês Frans de Waal, de 59 anos, é a maior autoridade mundial no estudo dos primatas – a ordem do reino animal à qual pertencem o homem e os macacos. Desde 1977, ele se devota à observação da psicologia e das relações sociais de espécies como os chimpanzés. Com suas pesquisas, De Waal demonstra que a distância entre o ser humano e os animais é infinitamente menor do que muitos cientistas e filósofos sempre supuseram – o que reafirma as idéias do inglês Charles Darwin sobre a evolução. No livro Eu, Primata (recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras), ele revela como os padrões de conduta na política e até a noção de solidariedade são verificados nos parentes do homem – e têm, portanto, uma raiz biológica comum. Em seu lançamento mais recente, Primates and Philosophers (Primatas e Filósofos, inédito no país), De Waal vai ainda mais longe: defende que a moralidade, atributo que por muito tempo se acreditou ser, por excelência, humano, também está presente em outros primatas. De seu laboratório na Universidade Emory, na cidade americana de Atlanta, o pesquisador concedeu entrevista por telefone a VEJA em que fala das semelhanças do homem com uma espécie considerada agressiva como os chimpanzés – mas também com os dóceis e libidinosos macacos bonobos.
Veja – Para muitas pessoas, sobretudo religiosas, a idéia de que homens e macacos têm parentesco é ofensiva. Quão próximos estamos dos outros primatas, segundo a ciência mais recente?
De Waal – Até cinqüenta anos atrás, a ciência ainda achava que o homem era o único animal com inteligência para usar e fabricar ferramentas. Imaginava-se também que somente nós éramos capazes de autoconhecimento e de antecipar situações. Ou ainda de nos comunicar com os demais da espécie por meio de símbolos. Todas essas proposições foram condenadas ao ocaso graças ao estudo aprofundado dos primatas. Há diferenças, é óbvio, entre o homem e seus parentes. Mas elas são muito menores do que se pensava e só foram impressas ao nosso comportamento de forma lenta e gradual. Para ter uma compreensão completa sobre nossa espécie, é preciso analisá-la dentro de um panorama de evolução biológica que precede sua existência. A observação científica demonstra que, para além das semelhanças anatômicas, também comungamos nossos traços comportamentais com outros primatas. Conhecê-los é também um exercício de autodescoberta.
Veja – O senhor afirma que nem mesmo a moral é um atributo exclusivo dos humanos. Por que se pode dizer isso?
De Waal – Porque em outros primatas já se encontram os alicerces da moralidade, como a capacidade de empatia, a reciprocidade e mesmo o senso de justiça. Não digo que esses outros animais sejam seres morais como nós. Mas não há dúvida de que eles possuem as ferramentas fundamentais com que se constrói um sistema moral. É um erro, portanto, julgar que a moralidade do homem surgiu do nada ou que é somente um produto da religião e da cultura. Ela tem raízes em nossa psicologia, que é muito similar à psicologia dos primatas em geral. Podemos rastrear sua origem até um ancestral em comum com chimpanzés e bonobos, 6 milhões de anos atrás.
Veja – O que muda com a descoberta de que a moral é um produto da seleção natural?
De Waal – Isso põe em xeque, por exemplo, a teoria sobre as sociedades humanas elaborada pelo inglês Thomas Hobbes no século XVII. Ele acreditava que, no estado natural, todos os homens estavam em guerra entre si e que a moral foi inventada com o intuito de permitir a convivência pacífica. A ciência hoje mostra que isso é um mito. Viemos de uma longa linhagem de animais que eram altamente sociáveis. Foi a natureza que criou as bases para a vida em sociedade tal e qual conhecemos, e não o homem. Mesmo o modelo econômico capitalista tem uma explicação darwinista. Experiências com os macacos já mostraram que entre eles também vigora um sistema de incentivo aos indivíduos que se aplicam em suas tarefas. O homem só aperfeiçoou algo que já constava em sua natureza.
Veja – O senhor afirma que Maquiavel poderia ter escrito seu tratado sobre o poder mirando-se nos chimpanzés. Somos mesmo tão iguais a eles nesse aspecto?
De Waal – Sim, os chimpanzés fazem política de maneira muito semelhante à nossa. Num grupo de galinhas ou entre boa parte dos outros animais, cada um alcança seu lugar no ranking do poder de acordo com sua força, destreza ou outra qualidade decisiva. Pode-se chamar isso de hierarquia – mas não de um sistema político. Já entre homens e chimpanzés as disputas não são ditadas puramente pela capacidade física dos indivíduos, mas também – e principalmente – por sua habilidade em formar coalizões. Alguém terá mais chance de alcançar uma posição dominante dentro do grupo quanto mais numerosos e importantes forem seus amigos. E também, é claro, quanto maior for seu poder de convencimento para levar esses simpatizantes a defendê-lo. Para obter o poder, não é suficiente ser bom de briga: é preciso cultivar relações. E, ainda, ter algo a oferecer em troca aos aliados. Esse tipo de transação é mais claro nos chimpanzés do que em qualquer outro animal. Bem antes de Maquiavel eles já sabiam que dividir os inimigos é a melhor forma de conquistar o poder.
Veja – Como isso se dá na prática?
De Waal – Eles formam parcerias (ainda que possam se voltar uns contra os outros ao sabor das conveniências), traçam estratégias de longo prazo e minam as coalizões dos adversários. Em minhas experiências, coloco chimpanzés na frente do computador e, por meio de um joystick igual aos dos videogames, testo suas reações diante de imagens de semelhantes. Eles demonstram ser tão bons no reconhecimento facial quanto os homens (ao contrário do que se pensou por muito tempo). Mas o mais surpreendente é que têm reações diferentes de acordo com o grau de ascendência política dentro do grupo do indivíduo que lhes é apresentado. Não raro, suas disputas de poder envolvem altas doses de drama. É comum ver coalizões sólidas entre dois machos ruir em razão da atração de ambos pela mesma fêmea. Ou então fêmeas se valendo de seu favoritismo e poder de sedução para fazer intriga e incitar o ciúme.
Veja – No livro Eu, Primata, o senhor comenta que a reação do ex-presidente americano Richard Nixon ao renunciar foi igual à de um chimpanzé destronado da posição de macho alfa. O que os políticos humanos herdaram de seus parentes primatas?
De Waal – A política é uma das áreas em que as semelhanças de comportamento entre o homem e os macacos são mais evidentes. Nossa linguagem corporal é basicamente a mesma dos macacos – e os políticos expressam essa verdade como poucas categorias. Isso é flagrante no jeito como eles inflam o peito e empostam a voz para falar em público. Também não é à toa que muitos políticos revelam a obsessão de nunca parecer pequenos. O ex-premiê italiano Silvio Berlusconi é um sujeito baixo e, por isso, não dispensava um banquinho nas ocasiões em que precisava ser fotografado ao lado de outros líderes. Isso vem de nossa raiz primata. Para ser poderoso e intimidante, é preciso parecer poderoso e intimidante. Há ainda outro traço inconfundível. Em tese, as disputas políticas deveriam ser travadas com base nos argumentos e na habilidade retórica. Mas, do Japão aos Estados Unidos (e imagino que também no Brasil), não é raro que discussões acaloradas nos parlamentos descambem para a agressão física. Embora acreditemos que nossas democracias são sofisticadas o suficiente para resolver as diferenças no campo dos argumentos, o instinto primata volta e meia nos trai.
Veja – Esse instinto também se faz sentir no ambiente de trabalho?
De Waal – De forma muito cristalina. Tempos atrás, o CEO da Microsoft, Steve Ballmer, teve a reação esperada de um macho dominante acuado diante das investidas do Google para tirar profissionais talentosos dos quadros da empresa. Ele atirou uma cadeira no chão e disse que daria uma lição nos “garotos” que são donos da rival. Acessos de fúria como esse não são diferentes dos que ocorrem entre os chimpanzés. Por mais que vejamos esse tipo de comportamento como algo negativo, ele de fato produz um efeito intimidante que nos afeta, da mesma maneira que acontece com qualquer primata.
Veja – Por que a descoberta dos macacos bonobos revolucionou o estudo dos primatas?
De Waal – Os pesquisadores travaram contato com os bonobos pela primeira vez nos anos 20, mas, na época, acharam que estavam diante apenas de uma variação nanica do chimpanzé. Ninguém imaginava quão especiais são esses macacos. Os bonobos, como se sabe hoje, são a antítese dos chimpanzés: em vez de se basearem na força, suas relações sociais se lastreiam na contenção dos conflitos e no uso do sexo como uma ferramenta de distensão acionada a todo instante. Só se começou a perceber isso nos anos 50 e não faz mais que quinze anos que os estudos mais profundos de seu comportamento trouxeram à tona os primeiros frutos. O resultado foi uma guinada espetacular naquilo que se sabia sobre os primatas, incluindo aí nossa espécie. Até então, todas as comparações entre os homens e seus parentes se baseavam nos chimpanzés. O fato de haver outra espécie tão distinta com o mesmo grau de parentesco mudou esse prisma.
Veja – O que temos em comum com os bonobos?
De Waal – Gosto de brincar dizendo que, à maneira do Dr. Jekyll e do Mr. Hyde, a personalidade de chimpanzés e a de bonobos estão introjetadas no homem. Com os primeiros, comungamos a agressividade, o comportamento territorial, o gosto pelo poder e a dominância dos indivíduos do sexo masculino. Com os bonobos, compartilhamos traços como o alto nível de empatia e a tendência à resolução dos conflitos por outras vias que não a da força. É por esse contraste que gosto de dizer que o homem é um animal bipolar. Quando somos maus, conseguimos cometer barbaridades piores que as praticadas por qualquer outro ser já observado. Mas, ao exercitarmos nosso lado bom, também vamos além de todas as demais espécies.
Veja – Os bonobos têm uma vida sexual incrivelmente movimentada. O que eles revelam a respeito do papel do sexo na vida social?
De Waal – Entre os bonobos, qualquer disputa séria é deixada de lado para dar vazão à libido. O desprendimento e a liberalidade deles nesse campo são capazes de fazer a maioria das pessoas corar, mas há uma semelhança crucial: tanto nós quanto eles fazemos amor por prazer. Eles constituem a prova biológica de que, ao contrário do que querem fazer crer tantas religiões, manter relações sem fins reprodutivos é, sim, uma característica inerente ao homem. Mais que um instrumento de prazer, o sexo funciona como uma moeda de troca social. A liberdade com que os bonobos praticam sexo dá às fêmeas desses macacos um poder de influência enorme. Isso talvez ajude a explicar a repressão da sexualidade em tantas culturas humanas – e o fato de o matriarcado ser uma exceção entre nós.
Veja – O poder e a violência são as melhores armas para vencer na evolução?
De Waal – Não necessariamente. Tome-se o caso dos bonobos. Eles são animais muito bem-sucedidos, embora possam ser considerados os hippies primatas. Levam uma vida folgada e sem rusgas. As sociedades humanas, assim como as dos chimpanzés, se baseiam na luta pelo poder e nos embates masculinos. Mas, ainda assim, em ambas as espécies os machos não são apenas brigões. A capacidade de cooperação entre eles é um traço não menos importante. Tanto quanto os traços que possam ser considerados negativos, o lado bom do ser humano é uma vantagem adaptativa depurada no decorrer de milhões de anos.
Veja – As guerras humanas encontram paralelo em outras sociedades de primatas?
De Waal – Entre os chimpanzés, é comum que grupos de machos se unam para defender suas posses ou invadir outros territórios. São investidas que não raro terminam em banhos de sangue. Mas a guerra como uma atividade organizada é algo que não se verifica em nenhum de nossos parentes. Ainda assim, não se trata de uma marca exclusiva dos homens, é preciso esclarecer. As formigas são os bichos que mais se devotam à guerra no planeta. Possuem exércitos regulares, com tarefas bem definidas para cada pelotão, e promovem matanças de grupos rivais. Mas nem entre elas existe algo equivalente ao genocídio, o assassinato maciço de outro grupo da mesma espécie. Só mesmo o homem é capaz disso em todo o mundo animal.
Fonte: http://veja.abril.com.br/220807/entrevista.shtml