“Os grandes primatas não podem falar, não podem contar suas histórias, nem seus sofrimentos, não podem fazer lobby no congresso, nem direcionar seu futuro. Mas nós podemos.”
Pedro Ynterian
Quando Pedro Ynterian adotou um chimpanzé de três meses, nascido em um criadouro de reprodução que comercializava os animais para circos e zoológicos, nunca imaginaria que ali estava nascendo a causa mais importante de sua vida. Quando o chimpanzé cresceu, o microbiologista e empresário cubano que chegou ao Brasil quando Fidel tomou o poder percebeu que uma pequena casa de três quartos na cidade de Itu não seria uma moradia adequada a um grande primata.
Foi aí que Pedro Ynterian teve a ideia de fundar o primeiro santuário de grandes primatas no Brasil, na cidade de Sorocaba, a pouco mais de uma hora de São Paulo. Hoje o santuário é uma das maiores referências do Great Ape Project (GAP), movimento internacional que luta pela garantia dos direitos básicos à vida, liberdade e não-tortura dos grandes primatas não-humanos – chimpanzés, gorilas, orangotangos e bonobos.
O GAP surgiu nos anos 1990 baseado nas ideias dos filósofos Paola Cavallieri e Peter Singer. O movimento se espalhou pelo mundo e hoje tem representações em diversos países. Desde 2008, graças ao empenho e ao trabalho de Pedro Ynterian, a sede mundial do GAP é o Brasil e ele é o presidente internacional da entidade.
No Brasil existem quatro santuários de grandes primatas afiliados ao GAP: além de Sorocaba, há unidades no Paraná, Vargem Grande Paulista e Ibiúna, interior de São Paulo. No santuário de Sorocaba, onde hoje vivem 51 chimpanzés, muitos animais compartilham um triste passado: os maus-tratos de seus antigos proprietários.
Nessa área de 500 mil metros quadrados, no entanto, não há espaço apenas para os chimpanzés, a maior paixão da vida de Ynterian. Ao todo são 250 animais, sendo onze leões, três ursos e um tigre, todos resgatados de circos e vítimas de maus-tratos.
Uma série de iniciativas recentes demonstra que o Projeto GAP está avançando no Brasil e no exterior. O prefeito de Sorocaba, Antonio Carlos Pannunzio, visitou o local recentemente e pode autorizar a qualquer momento a transferência do chimpanzé ‘Blackie’ para o santuário. ‘Blackie’, que hoje vive no zoológico de Sorocaba, começa a apresentar problemas psicológicos desde a morte de sua companheira ‘Rita’, em 2011.
E no início de novembro – em conjunto com seu correspondente na Espanha, o Projeto Gran Símio – o Projeto GAP divulgou o Manifesto Mundial pelo reconhecimento dos grandes primatas como pessoas não humanas, uma das bandeiras do projeto. Assinado por 500 personalidades mundiais nas áreas da Ciência e Sociologia, o documento solicita que a Comunidade Europeia condene a tortura de chimpanzés na Alemanha.
Pedro Ynterian, do Projeto GAP, e Pedro Pozas, do Projeto Gran Símio, falaram sobre este e outros assuntos nessa entrevista exclusiva.
Como nasceu o Projeto GAP no mundo?
Pedro Ynterian – O Projeto GAP foi criado pelo filósofo australiano Peter Singer junto com um grupo de cientistas, primatólogos e biólogos, que chegaram à conclusão de que os grandes primatas devem ter um tratamento diferenciado na sociedade. Por várias razões, mas principalmente pela inteligência e semelhança com o ser humano (99,4% do DNA é exatamente o mesmo), chimpanzés têm todas as características de um humano primitivo. Chimpanzés podem fazer transfusões de sangue com humanos, isso é apenas um exemplo que mostra que devem receber um tratamento diferente e ter alguma lei que os proteja. Chimpanzés não podem ser tratados como frangos e ratos. Quem vê um chimpanzé pessoalmente, não em filme, percebe que ele é quase um humano. Sendo quase humano, não pode ser tratado como objeto. Na nossa sociedade, ainda são tratados como objetos, coisas.
Qual é a grande bandeira do GAP?
O Projeto GAP defende o direito dos grandes primatas viverem em liberdade na natureza. Quando isso não é possível, defendemos a Declaração dos Direitos dos Grandes Primatas. São basicamente três pontos: Direito à Vida – A vida dos grandes primatas deve ser protegida. Seus membros não podem ser mortos exceto em casos extremos, como legítima defesa. A Proteção da Liberdade Individual – Os grandes primatas têm o direito de viver em liberdade em seu habitat e os que já vivem em cativeiro de direito de viver com dignidade, em locais espaçosos, protegidos da exploração comercial. E a Proibição de Tortura – A imposição deliberada de dor intensa, física ou psíquica, sem motivo ou por suposto benefício de outros.
Como surgiu o seu interesse pelos grandes primatas?
Comecei a estudar os primatas quando comprei o primeiro chimpanzé e me apaixonei pelo assunto. Pouco depois comprei mais dois animais de um centro particular do Paraná que reproduzia e vendia os primatas. Eu morava em Itu na época e, há 18 anos, montamos a estrutura do santuário de Sorocaba e trouxemos os animais para cá.
De onde vem os recursos para manter o GAP de Sorocaba?
Saí de Cuba após a Revolução por problemas políticos e vim para o Brasil contratado por uma firma norte-americana como bioquímico. Depois abri uma empresa e é dela que tiro recursos para bancar o GAP. A maioria dos santuários no mundo é mantida com dinheiro de doações, o santuário de Sorocaba é um exemplo único. Faço isso para não receber pressões e poder trabalhar da maneira que considero a mais adequada.
Qual é a diferença entre santuários e zoológicos? Os zoológicos são inimigos ou tem algum valor?
A diferença é que nos santuários os animais são totalmente livres, dia e noite. Não interferimos em nada. Podem dormir fora, ao ar livre, onde quiserem. Em zoológicos depois das cinco da tarde os grandes primatas costumam ficar presos em ambientes pequenos, chegam a ficar 16 horas por dia em cubículos. E nos zoológicos eles ainda sofrem porque ficam expostos ao público durante um período do dia. A maioria dos primatas que veio de zoológicos estava em péssimas condições. Os primatas que vieram de circos têm problemas físicos, dentes arrancados, castrados, marcas de espancamento. Mas os que vêm de zoológico chegam com problemas mentais, o que é muito mais difícil de tratar. Temos uma proposta para transformar zoológicos em centros de resgate. Metade dos zoológicos do país são ilegais, não reconhecidos pelo Ibama, e não aceitam receber animais do tráfico. Outro dia a Polícia Ambiental chegou aqui com um bugio ferido. Tentaram levar ao Zoológico de Sorocaba, mas eles não o aceitaram. Eu aceitei que ele viesse para cá. Hoje está curado e não vai mais sair daqui, não tem para onde ir. Acho que os zoológicos não cumprem o seu dever social. O Ibama não tem para onde enviar os animais confiscados. Se converter os zoológicos em centros de resgate, poderíamos transformá-los em instituições mais úteis. O assunto está sendo discutido no Congresso, mas foi arquivado pelo lobby dos zoológicos. Zoológico é um negócio.
Como é a rotina de trabalho no GAP de Sorocaba?
A rotina começa de madrugada, quando as bandejas com a primeira refeição são preparadas. Eles se alimentam cedinho e, às 10h, comem novamente. No final da tarde, uma nova refeição. Durante o dia, comem frutas e carne quatro vezes por semana. Comem feijão, milho, frango, arroz. Damos muitos iogurtes e sucos, são seres civilizados, humanizados. Como nunca vão voltar para o habitat natural deles, na África, vivem aqui e são tratados como pessoas, com a mesma atenção que teriam se fossem pessoas.
Como é a organização social entre eles?
Separamos os chimpanzés em grupos, alguns muito jovens. Os que desafiam o macho alfa de cada grupo têm que ser separados. Em cativeiro somos obrigados a fazer isso – na mata, eles poderiam fugir para outro lugar quando são ameaçados por primatas mais jovens, mas em cativeiro não temos opção, temos que separá-los. É complicado administrar grandes grupos em cativeiro, principalmente primatas normais, que se relacionam bem entre eles e com os humanos. Cada um tem sua personalidade.
Há algum tipo de pesquisa científica realizada aqui?
Não faço pesquisa, o santuário existe apenas como um hobby. Comecei a me envolver e a ver as injustiças que faziam com os chimpanzés, isso virou uma causa de vida. Tenho minha empresa de laboratório, de produtos científicos, sou bioquímico.
Hoje em dia há alguma lei que regula os direitos dos primatas?
Os grandes primatas são protegidos pela Convenção de Washington, a CITES (Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção). Por isso, não se pode comercializar ou fazer tráfico de grandes primatas. O acordo foi assinado por 179 países, inclusive o Brasil. Temos um representante no Ibama que fiscaliza isso. Isso ajudou muito no controle do tráfico. Mas não é suficiente: os grandes primatas não podem ser protegidos apenas pelas mesmas leis que protegem os outros animais.
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Como funciona o Projeto Gran Símio na Espanha?
Pedro Pozas – O GAP começou na Espanha quando Peter Singer apresentou o ‘Projeto Grande Símio’, um livro onde mais de 30 cientistas de diferentes ramos da ciência e primatólogos como Jane Goodall mostravam suas experiências. O objetivo era lutar por seus direitos, melhores condições em zoológicos, resgatar primatas em más condições de saúde. Em 2008, a Espanha deu um passo à frente e o parlamento aprovou uma lei que garantia o direito dos grandes primatas, mas logo depois o próprio governo voltou atrás. Perdemos uma grande oportunidade, os políticos espanhóis usaram o GAP para lutar entre si. Atualmente estamos promovendo o manifesto e vamos levá-lo à ONU para lutar por uma declaração universal dos Direitos dos Grandes Primatas. As 500 pessoas que assinaram o documento demonstram que quem luta pelos direitos dos grandes primatas não são apenas e ecologistas radicais, mas acadêmicos que pedem esses direitos.
Felipe Machado
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