A Dor de uma Traição
postado em 06 ago 2004

O e-mail abaixo foi enviado pela Dra. Cléa Lúcia Magalhães, médica veterinária no Santuário do GAP, para algumas pessoas amigas no IBAMA/ Brasília que a conheceram quando ela trabalhou 18 anos no Zoológico daquela cidade. Por seu sentimento, realismo e sofrimento, aqui o enviamos àqueles que entendem esta realidade. No fim o IBAMA foi o algoz dos chimpanzés neste episódio, já que acompanhou pessoalmente, algo inusitado e raro, ao pessoal do Zoológico, a fim de fazer a transferência que nunca deveria ter acontecido. Talvez este gesto cruel de um órgão que tem o dever de proteger o bem-estar animal, sirva de exemplo para que nunca mais aconteça e todos na sociedade devemos continuar lutando, hoje mais que nunca para que estas práticas irracionais sejam erradicadas.

Dr. Pedro A. Ynterian
Coordenador Nacional
Projeto GAP – Brasil

“03 de agosto de 2004.

Meus queridos amigos do IBAMA,

Hoje foi o dia mais triste que vivi aqui no Santuário desde que cheguei. Vocês não imaginam e nem fazem idéia do que é conviver diariamente com um grande primata como um chimpanzé. Eles são realmente muito especiais e muito próximos de nós. Possuem atitudes que não dá para explicar e descrever em um papel. Transmitem força, sentimento, amor, tristeza, emoção com um simples olhar.
Vocês me conhecem e sabem que trabalhei muitos anos em um zoológico e agora estou tendo uma oportunidade única e maravilhosa de conhecer realmente o que é trabalhar com um ?animal? especial como o chimpanzé.
Pedimos a intervenção de vocês para que nos dessem um pouco mais de tempo para que passado o período eleitoral, pudéssemos tentar novamente mostrar a importância que é para um primata social como nós, ter a oportunidade de conviver em uma família. Como é importante ter parceiros para lhe auxiliarem em um momento de desespero, de briga , de ter apoio em todos os momentos, de vários amigos. De poder aprender com o outro aquilo que estava esquecido por anos de cativeiro inadequado, sofrido e isolado em um recinto sem opções e perspectivas.
O Excelentíssimo Prefeito da Cidade de Sorocaba declarou em uma entrevista que ?Só em Sorocaba os chimpanzés pensam e falam o que desejam?? Ele ironizou nosso pedido, pois falávamos dos sentimentos e emoções que observamos com o convívio com Blackie e Rita. Eles podem não falar o português, mas transmitem-nos seus desejos e emoções de outra forma. Já que eles não falam fluentemente o português, nós que convivíamos diariamente com eles e aprendemos a reconhecer suas emoções e desejos, tínhamos o dever de tentarmos pedir que eles pudessem continuar aqui e ter a chance de formar uma família, um grupo social maior. De ter a chance de poderem ser eles mesmos sem a interferência do ser humano.
Vocês, como técnicos da área concordariam com o senhor prefeito?
Meus amigos, quando a equipe do zôo chegou aqui para busca-los, e me dirigi ao recinto para poder fechar as portas para que os outros não vissem seus amigos indo embora, presenciei Rita na janela com Tuca pela última vez.
Depois quando o caminhão do zoológico passava ao lado do recinto levando dentro das caixas Blackie e Rita , Tuca subiu em cima do tablado e na pontinha dos pés tentando ver para aonde os estavam levando, começou a vocalizar tristemente e todos os outros chimpanzés subiram no tablado e escutaram o ?choro?de Tuca silenciosamente (os chimpanzés, quando um vocaliza quase todos respondem) como se tivessem dando um último adeus aos amigos que ficaram tão pouco tempo entre eles. Vocês não imaginam a dor que senti forte dentro do meu peito quando vi isso. Foi muito, mas muito sofrido.
Vocês podem achar que estou dramatizando, que estou sendo muito emotiva mas tenham a certeza de que se você convive quase que 24 horas com um ser especial como esse, não tem jeito de não ser emotiva. Vocês acreditariam se eu lhes dissesse que um chimpanzé adulto, que veio para o Santuário, pois se tivesse que continuar no zoológico seria eutanasiado por auto mutilar-se, secou e limpou minhas lágrimas com a maior delicadeza do mundo, passando seus dedos suavemente sobre meus olhos? Acreditariam que um deles limpou minha ferida com gaze, como se fosse um enfermeiro? Pois é, eu já vivi tudo isso neste pouco tempo que aqui estou.
Por essas e muitas outras coisas que aqui vivo, presencio e aprendo é que peço a vocês, como autoridades máximas do Brasil na área de fauna, de meio ambiente que exerçam realmente suas autoridades, seu papel, sem medo ou receio e façam cumprir a Lei, não deixando que um animal Cites I, um animal social, viva isolado em pequenos recintos sem a chance de conviver com um semelhante seu. Vocês não puderam nos auxiliar neste caso, mas tenho a certeza de que podem fazer muito por outros chimpanzés que estão sozinhos, isolados em vários zoológicos e circos espalhados pelo Brasil.
Dr. Pedro não quer tirar nada de ninguém. O que ele deseja é que esses nossos irmãos menores possam ter uma vida melhor, com mais dignidade, com respeito, cercados de amigos e parceiros para todos os momentos.
Venham conhecer aqui para sentirem de perto aquilo que tentamos passar para vocês através de nosso sentimento mais puro, com a vontade de poder auxiliar um ser que não pode falar, que não pode brigar pelo direito de ter sua própria vida.

Um grande abraço,

Lucinha”

Notícias do GAP 04.08.2004