A descoberta dos gorilas pelos humanos
postado em 23 out 2007

(Reprodução de matéria publicada no Jornal o Estado em 24.10.2007)

Um antídoto para o ambientalismo catastrófico Marcos Sá Corrêa* O primeiro representante da civilização ocidental a documentar a existência do gorila no Congo foi o capitão Oscar von Beringe, um oficial alemão que explorou a cadeia vulcânica do Virunga em 1902. Beringe manifestou sua admiração pelo primata que acabava de descobrir nos termos mais eloqüentes da época – à bala. Matou dois gorilas. E, com isso, confirmou a lenda de que o bicho era “extremamente feroz”, como dissera um missionário do século 19. A reputação do gorila só começaria a virar no fim da década de 1950, quando chegou ao Virunga o biólogo George Schaller, inaugurando os novos estatutos da convivência com a espécie. Os mesmos que, muito mais tarde, quando a reserva foi parar no meio dos conflitos étnicos de Ruanda, levariam à morte – e ao cinema, reencarnada por Sigouney Weaver – a primatóloga inglesa Dian Fossey. Schaller instalou-se numa cabana de palha para observar os gorilas como só agora os pesquisadores aprenderam a fazer: pacificamente. Testou seu método num encontro cara a cara com D.J., jovem macho de costas prateadas, em plena idade de comprar briga para mostrar quem manda. Um dia, sem mais nem menos, “ele avançou em minha direção até parar a dez metros, soltando um urro terrível e socando o próprio peito”, conta Schaller. Ele admite que nunca, “nem quando estava perfeitamente preparado para isso”, perdeu a vontade de correr ao ouvir o berro de um gorila. No caso, tratou de recuar “cautelosamente” para um galho a três metros de altura do chão. Uma fêmea veio examiná-lo mais de perto. Atrás dela, o bando inteiro acabou a seus pés, cercando-o. Três gorilas empoleiraram-se na árvore em frente. Um filhote veio sentar-se quase a seu lado. E um macho adolescente chegou ainda mais perto, mordendo a boca em sinal de apreensão. Assim os gorilas incorporaram Schaller a seu cotidiano. Quarenta anos depois, voltando ao Virunga, ele seria arrancado da rotina de encher o caderno com anotações “por um leve toque na perna, como se alguém batesse com as costas da mão”. Uma fêmea chamada Gukunda, com o filhote nas costas, tentava fazer contato com ele. Schaller afastou-se, como manda o figurino da neutralidade acadêmica. Mas sentiu-se para sempre “honrado” porque Gukunda o tratara como “um parente”. A história está num dos melhores livros de aventura publicados em muito tempo. Mas, por enquanto, publicados só em inglês. Seu título – Um Naturalista e Outras Feras, na edição americana – nem parece coisa de cientista. Mas é o tipo de obra que todo mundo mereceria ler sobre conservação da natureza, antes que o aquecimento global transforme de uma vez por todas os ambientalistas em roteiristas do cinema de catástrofe. Isso, claro, se um dia alguém se lembrar por aqui de lançá-lo em português. BIOLOGIA DE CAMPO Schaller acaba de reunir, em 19 capítulos, meio século de trabalho pioneiro nas últimas fronteiras da vida selvagem para conhecer de perto as onças do Pantanal Mato-Grossense, os caribus do Ártico, os leões do Serengeti, os ursos panda da China, os leopardos do Paquistão ou os antílopes dos altos platôs tibetanos, antes que a ignorância os extermine. Ele praticamente inventou a biologia de campo, que se distingue do ecoturismo acadêmico pelo rigor científico, a dureza da rotina e a relevância da causa. Com a vantagem de, aos 74 anos, continuar por aí, nos confins do planeta, de mochila nas costas. * É jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

Fonte: http://www.estado.com.br/editorias/2007/10/24/ger-1.93.7.20071024.9.1.xml?